Translate

Thursday, December 27, 2007

Natal

A igreja estava fria. Não porque fosse Inverno. Era Natal.
Não chovia,nem nevava. O cenário era frio até nisso.
A noite inebriante estendia-se pelas ruas que levavam à igreja. As ruas que percorrera para ali chegar. Equanto andara não sentira frio. O contínuo dum breve futuro aquecia-lhe as mãos.
Era Natal. Nada nas pessoas à porta da igreja lhe indicava que fosse Natal. Mantinham um estado alternado entre um sorriso ocasional e um cansaço nos olhos, que se escapava sem querer. E ele precisava tanto de calor, algo que lhe aquecesse a alma, que o fizesse acreditar. Tanto que ele precisava que fosse Natal...
A igreja era fria. Mais fria do que a rua. Quando se sentou para ouvir as crianças cantarem sentiu as mãos duras, azuis. Devagar essa cor atravessou o corpo todo deixando-o dorido e fixo no banco da igreja.
À medida que as vozes límpidas ecoavam nas paredes e se atiravam contra ele, sentia-as cairem nas profundezas do seu ser. Algumas caíram nos seus eternos buracos, aqueles vazios que ele queria esquecer. Não voltaram mais. E tornaram-se azuis, como as suas mãos.

Monday, December 17, 2007

A última carta

Porque Pablo Neruda passou uma última noite estrelada igual à minha. E porque tem muito mais talento do que eu.

Porque esta é a última carta, os “últimos versos que te escrevo”.
Por isso te peço que abandones os meus textos. Não quero que os leias, não quero a tua nostalgia. Como vês, tenho Pablo Neruda para me fazer companhia... Enquanto continuares a ler, a “minha alma não se vai contentar por haver-te perdido”. E eu quero que esta seja a última carta, e a “última dor que tu me causas”.


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
.
O vento da noite gira no céu e canta.
.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.
.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.
.
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.
.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.
.
Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

Pablo Neruda
tradução de Fernando Assis Pacheco.

Sunday, December 02, 2007

Essência fatal

"O homem de neve olhou para dentro da casa e viu um objecto preto bem brunido, com o seu forno de cobre. Por baixo luzia o lume. E o boneco sentiu uma sensação difícil de explicar.
(...) Era o degelo. Este aumentou, o homem de neve diminuiu. Não disse nada, não se queixou. Tinha de ser assim.
Certo dia esbarrondou-se. No lugar onde ele estivera, ficou um atiçador do lume, em volta do qual os garotos o haviam modelado.
-Agora compreendo- disse o cão. - O sujeito, afinal tinha o atiçador no corpo, não admira que sentisse nostalgia do fogão. Foi isso que o matou. "

O Homem da Neve - Hans Cristian Andersen

Popular Posts