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Thursday, May 27, 2010

Amores banais

Nunca quis amores banais.
Não tenho qualquer interesse em não estar
sozinha.
Tenho em mim este narcisismo
Que arranquei à força de espelhos.
E aperto contra o peito todas as
noites.

Nunca gostei de metáforas e
máscaras para a solidão,
que usam camas sucessivas
para fabricar amores sucessivos.
Laivos de prazer que enchem páginas
de escrita de poetas
boémios.
Únicos, neste país de invenção,
onde ler duas palavras seguidas
é cultura.

Nunca gostei de cozinhas partilhadas
E camas partilhadas.
Tenho horror à fusão
de vidas.
E a casamentos de conveniência
Que inventam vestidos compridos
E crianças ranhosas,
Numa dança cíclica que a inteligência
que não existe não permite
não questionar.

Nunca tive paciência para histórias de amor
De televisão
papadas entre sexo explícito
e bordados cor-de-rosa.
Tresandam a mofo.

E eu,
gosto de respirar à janela e sentir os
meus pulmões doentes.
Assassinados pelo meu amor.
O melhor futuro que se pode
prometer é o presente.

Sempre quis um amor de morte
Suspenso em viagens.
Com açafrão e o calor do deserto.
Nas palmas das mãos.

Sempre quis fugir de madrugada
E viver um amor de cinco minutos.
Que durasse para sempre.

Monday, May 24, 2010

Amor cíclico

Do sítio onde estava via toda a praia:
O extenso areal branco sem margens e o risco de mar azul claro,
borrado
pelos dedos de um qualquer Deus
descuidado.


Do sítio onde estava via, repetidamente,
uma mancha negra de pessoa
que atravessava o areal
sem grãos de rasto;
um cenário deformadamente
escurecido de branco.


Mas trazia-lhe o mar um gosto
amargo
a consciência de morte,
sempre que de manhã passava na praia e
aquela mulher lhe comia
mais um pedaço de coração.


"Porque te vestes de preto?"
Estou de luto permanente por mim.


Há um agoiro de vento que me adoece
as asas.
Vem de terra.
Sempre veio de terra. E por isso
passeio a minha consciência
pelo mar,
enquanto espero a minha vez de
morrer.

Sunday, May 16, 2010

Palavras certas

 “Prefiro a morte”, disse ela.
Oh, ela estava sempre a dizer esse tipo de coisas. Essas e outras, todas misturadas eram difíceis de entender.
Sempre tive vontade de lhe dizer que a morte era uma coisa séria. Que ela devia pensar bem na morte. Tal como pensava na vida.

Mas ela não pensava em nada. As palavras fugiam-lhe da boca, como eu sempre fugira de qualquer responsabilidade.

Outras vezes ela chorava. E eu, tal como um boneco demasiado desajeitado, entupia o ar com o meu silêncio.

Mas naquele sítio escuro ao pé do rio, eu pensava na morte. Como sempre, os pensamentos esquivos do meu último momento angustiavam-me as mãos retorcidas. Cada golfada de ar a saber á ultima, sem ser a última.
Esse gosto de sangue ressequido nos lábios e uma vontade de vodka: acabar com esta consciência e perpetuá-la indefinidamente.

E porque é que eu nunca sabia dizer as palavras certas?
A morte. Ninguém prefere a morte.

Ontem encontrei-te por acaso. Ias na rua certa para me encontrares e sabes que não acredito em coincidências. Agarraste essa minha fragilidade e levaste-a para a cama num abraço de prazer demorado.
Só acordei de madrugada, na tua cama fria, e entre um beijo demasiado molhado encontrei as palavras certas para a tua presença dentro de mim naquela noite.

E senti-me a pessoa errada.

Ela sempre dizia que eu sou uma pessoa permanentemente insatisfeita.

Friday, May 14, 2010

Perfeição

Tu sempre foste o melhor.
A tua força calcária atravessava os tempos, como se vivesse permanentemente em ti uma guerra ganha.
Sempre afogaste os medos como gatos recém-nascidos indesejáveis.
E ao som da morte, tu limitavas-te a baixar o volume; sempre controlaste a realidade.
E ganhavas em perfeição a todos, porque te ultrapassavas em corridas sucessivas. Deixavas cascas de ti mesmo para trás todos os dias.
Naquela noite, decidiste tocar perfeitamente para a assistência que te idolatrava. E como sempre, a perfeição estava ali ao teu alcance, como uma maçã numa árvore demasiado baixa.
Nunca soubeste o que correu mal nessa noite. Ainda hoje não sabes: a árvore continua do mesmo tamanho, tal como os teus nervos queimados. A perfeição continua tão fácil hoje como naquela noite. Ainda não sabes onde erraste, porque nunca chegaste a errar.

Mas eu vi. Eu vi-te ser perfeito. E vi-o enganar-se nas primeiras notas. Vi o desespero humano na figura física que transpirava das mãos; o amor que trouxera para o palco traíra-o. Ao contrário de ti, ele não era perfeito e errou irreversivelmente em notas que se perderam na música transfigurando-a, enquanto a assistência segurava uníssona a respiração dele que podia quebrar-se a qualquer momento.
O que foi perfeito, foi a força dele. O mesmo amor que o traíra, salvou-o e ele deu essas notas por perdidas. Mas só essas. Depois esqueceu-se de quem era e chorou a sua imperfeição em palco.
A assistência aplaudiu de pé, como nunca te aplaudiu a ti e, agora tu sabes, nunca te vai aplaudir.
Porque a verdadeira perfeição só emerge depois da falha.
E tu não sabes falhar. Por isso nunca serás perfeito.


Para todos os músicos que têm a pretensão da perfeição.

Wednesday, May 12, 2010

Love cannot save you from your own fate

Sinto-te com todas as extremidades.

Quero chegar a casa e partir
todos os teus móveis.
Amarrar a sereia com a minha
corda, fazê-la gritar
e ser
um Ulisses desvairado
saciado pela sede
de não voltar para a Penélope.

Quero destruir-te e deixar-te
caído no chão, ao pé
da faca com que me cortarás
o coração.

Eu sinto-te demais. E sou
um fantoche de
mim mesma, que não sabe
obedecer ao mestre.

O amor latente é este
que nunca devia começar.
Nunca soube pôr o amor em cima
da mesa quando chego a casa.
E por isso, um dia vais bater a porta
e encontrá-lo espalhado
pelos móveis que nunca cheguei
a partir.
E perceber que eu sou a causa
da morte
do nosso amor imortal.

Monday, May 10, 2010

Pensamento do dia

Hoje tenho vontade de voltar a Paris e dizer-lhe que ele sempre esteve certo.
Eu não volto a Paris.
Mas hoje sinto o orgulho dele em mim.

Friday, May 07, 2010

Poema

Dois quadrados de sol:
Eis o triunfo do meu dia.

E tu atravessada com uma espada
no enquadramento
Sorris com esses dentes de
desenho animado.
e essa roupa de bolor
que está na moda.

Chega-me no ar o cheiro
do teu caixão
e uma vontade incontrolável de
vomitar-te para cima
pinta-me os lábios.

Hoje estou grávida
de solidão.

E vejo os meus quadrados de sol
trincados.
Um enjoo
por saber que o meu caixão
está ao lado do teu.

Tuesday, May 04, 2010

Jacques Brel

Existe uma aparente indiferença sobre o que não se vê. Ou como se tudo o que se visse fosse simplificado numa equação de imagens.

Eu sempre rejeitei a realidade dos meus olhos, esses órgãos viciados num mundo demasiado feio para não enviesar o mais refractário dos ângulos.

Hoje oiço Jacques Brel à janela da cozinha. E tu dizes-me que ele era feio. Como se a vida dele, como se a existência dele se resumisse a um corpo abandonado dentro de uma voz. Como se essa voz, essas palavras que oiço neste momento fossem a compensação cedida por um qualquer Deus. Como se esse Deus que me inventas tivesse pena da cara dele, das rugas dele, do nariz torto dele. Como se ele cantasse daquela forma porque nasceu assim, fechado num corpo horrível e lamentasse em cada nota, a solidão da sua fealdade que o afastou do mundo das pessoas bonitas onde o sexo é garantido.

Mas na realidade ele era feio, tu repetes. E isso quase me magoa, de tão complexamente superficial. Eu sei que ele era feio. Sei-o porque me habituei aos estímulos deste mundo mudo. Sei-o porque reconheço os padrões.

Mas eu não compreendo que ele seja feio. Eu não o acho feio. Mesmo com as rugas e o nariz e todos esses defeitos, que aparentemente o tornam horrível. No meu mundo invertido eu só lhe vejo a voz. A voz é o único corpo que lhe conheço.

Importa-me lá que ele tivesse essas características todas que lhe apontas. Não são relevantes, não existem. Não precisam de ser compensadas. Elas são aquilo que eu quero ver e não o contrário.
Por isso não digas que te estou a fazer um elogio pela metade quando te digo que podes ser-me tão lindo como o Jacques Brel. Tomara esse Deus que não existe, em algum momento conseguir compensar o corpo grego que tem, com uma existência tão cheia como a que existe na voz de Brel.
Este é o melhor elogio que te posso fazer. Porque significa que não tens nada a compensar.



Para o Ricardo

Monday, May 03, 2010

Um cigarro no caís do Sodré

Ia a sair de casa, quando o encontrei. A noite estava tão quente que os vidros da janela escorriam mel de Verão. E por isso larguei o quarto aberto, silencioso como um gato para poder lamber esse doce, cuja ausência me tornava ainda mais anémica.
“Onde vais?”
Perguntas de vão de escada, de prédios multiplicados.
“Vou lá a baixo fumar um cigarro”
Olhares cúmplices em lâminas de instantes. Por há sempre sinónimos para aquilo que não queremos dizer. E há uma linguagem de esgotos, que nos vive debaixo da pele onde sabemos as respectivas correspondências.
Eu repito-me que ele conhece essa linguagem proibida. Que sabe exactamente o que cada uma destas palavras quer dizer no meu universo restrito que é o mundo inteiro.
“Está bem, fazes bem”
Mas ele não sabe.
Desço as escadas em busca de ar, sinto-me repentinamente presa numa rotina de vida. Como se este calor puxasse em mim aquele amor escondido. Como se nunca tivesse deixado de amar a minha adolescência e esse primeiro amor voltasse sempre que faz calor e eu estou presa em quatro paredes de uma rua.
Ar puro.
Afasto-me da porta do prédio. Dos vizinhos. Da rua. Do bairro.
O cigarro sabe-me a mel, neste vento que me leva para longe. Gostava era de voltar ao meu amor, que ficou esquecido.
Este calor inquieta-me, faz arder a pouca razoabilidade que me sobrou desse sonho antigo. Porque é que este calor não me explodiu nas mãos? Vive-me aqui, numa implosão constante. Gostava tanto de vê-lo explodir, como gosto de o sentir aqui, sensualmente perto da minha pele a ameaçar a explosão.
Há uma distância ilimitada que nunca poderei percorrer. E não vale a pena dizer que amo Lisboa. Amei-a dantes, nestes anos podres barrados de ócio. Ou talvez nunca tivesse chegado a amá-la. Porque não amo nada.
Só amo o que não se ama: o próximo instante, as ruas sem paredes. As gotas do mar e a saudade do futuro.
Não a vale a pena arranjar todos os dias desculpas para poder amar. Estou farta de desculpas que turvam o mundo para eu poder suportá-lo.
Não quero amar coisas que não quero amar. Tal como não quero ouvi-lo dizer coisas que ele não disse.
Voltei. Abro a porta.
“Demoraste! Foste fumar um cigarro ao Caís do Sodré?”
Até parece. Mas ele não sabe.

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