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Tuesday, October 26, 2010

Untitle

Durante a minha hora de almoço rodei pelo Saldanha e comprei em segunda mão um livro
sobre a origem Universo.

Enquanto descia para o metro prendendo as mãos na minha mala à tiracolo, que nunca mais
tinha usado, dei-me conta que o Outono tinha chegado.

E foi quando o metro chegou à minha estação que fechei o livro, sem nada para marcar
a página onde ficara.

Levei a mão à mala esquecida e procurei qualquer coisa que servisse. E veio-me um bilhete de
avião perdido, duma viagem que fizera.

Munique, estava escrito.

“O meu Universo é finito mas não tem fronteiras”. Porque já fui três vezes a Munique e deixo a minha vida por aí.

Às vezes encontro-a pela rua e dou-me conta de quanto gosto dela.

Monday, October 11, 2010

Icaro invertido

Tatua-me um Ícaro nas costas
Para que as asas dele abracem as minhas
Omoplatas
e delas nasça
Vencida, a minha coragem
Em saltar da plataforma e enfrentar
Um mundo que nunca esteve
Preparado para as minhas asas
De cera.

Porque este Ícaro invertido
Que me vive na pele
É o Sol do Mundo e funde-o
Quando ele é de ferro e se torna
Próximo.
Por isso nunca voa
E vive sozinho.

Friday, October 08, 2010

Futuro

Hoje estou farta do passado. Dos vasos cheios de tristeza que coleccionam belos poemas. Estou de farta de romantismos feudais, das folhagens de Sintra. De céus cinzentos e ácidos. De cidades barrocas e góticas. Estou farta da tristeza que nem sabe ser mórbida.

Hoje, para variar apetece-me o futuro. Os prédios enormes e listados de vidros, as ruas amplas e sem pessoas, os objectos geométricos. O sol.

Hoje apetece-me escrever sobre tudo o que ainda não aconteceu. Sobre o romantismo do jazz seco, sobre a decoração vanguardista. As roupas extravagantes e direitas.

Porque é ai que está a vida, é aí que estão todos os poemas necessários à minha sobrevivência. No futuro está a minha solidão inatingível, aquela que precisa de mim.

O passado é só uma folha borrada, que fingimos querer esquecer, para lhe espremer poemas como abutres. E o presente é uma espera dolorosa até que se cristalizem as palavras.


 
Mas não hoje.
Hoje o passado é mesmo passado e não se escreve sobre ele, porque não importa.

Wednesday, October 06, 2010

La Valse des Monstres

Lembro-me do inferno horrível que fora aquele Verão com calor e falta de esperança, gritos e lágrimas que não saiam da pele, mesmo depois de muitos banhos. Fora uma época tão triste, que nem as janelas nem o vento nem os sonhos em que via a Torre Eiffel da janela do meu quarto me faziam acreditar que algum dia a minha sorte mudaria.


E foi a primeira vez que a vida brincou comigo, porque eu nem sequer gostava especialmente de Paris, mas a minha ânsia em deixar tudo isto fazia-me sonhar constantemente com o ícon de França recortado no meu horizonte. E eu sentia o coração a bater descontrolado, como se de repente eu me apercebesse que afinal Paris estava perto, que eu estava a vê-lo. Bastava-me correr, bastava-me andar, estava tão perto, quase lhe conseguia tocar.

Depois acordava e esta sensação de felicidade custava a despegar-se dos poros. Parecia-me tudo possível, e só quando apanhava o comboio e estava limitada a um horário e ao dinheiro da minha carteira, só aí é que começava a acordar do meu sonho. Porque Paris estava perto, eu é que estava longe.

E foi a segunda vez que a vida brincou comigo: no fim desse Verão foi a minha janela que se aproximou de Paris, quando me apaixonei por um francês trazido a esta cidade deslavada que era Lisboa.

Tentei fugir várias vezes, mas uma noite não resisti mais, e fechei os olhos enquanto me equilibrava numa curta vara sobre o precipício em redor duma total escuridão. Nessa noite, lembro que alguém me fez companhia, quando vim cá fora apanhar ar e focar um pouco o Mundo. Mas tudo aquilo era demais para mim, como se vomitasse os excessos de um corpo que permanecera demasiado tempo estático. E lembro-me que lhe confessei “Isto vai ser a minha desgraça”. Era tudo tão explícito, que aquela sombra riu-se nervosamente e pôs-me a mão no ombro. E a confissão dela foi essa, naquele silêncio estava a sua profunda vontade de se apaixonar como eu.

Nessa última noite, rodei por Lisboa como um fantasma que já cá não está. As sombras do Bairro Alto e de Santos, gritantes e espampanantes abraçavam-me e tocavam-me, como se lhes pudesse passar por osmose um bocado daquela minha paixão que se via em todo o lado. De repente, o Mundo inteiro queria estar apaixonado como eu. De repente toda a gente queria encontrar Paris como eu encontrara.

Mas a minha confissão àquela sombra permanecia como um presságio sob a forma de música. E aquela Valsa começou a tocar para mim nas ruas de Lisboa e sobrepôs-se ao êxtase de paixão que todos cobiçavam. Mas aquela Valsa, a Valsa dos Monstros só eu a ouvia.

E estava fora do sítio, desenquadrada nesta Lisboa deslavada. Como as marcas do amor que eu ia deixando a caminho de Belém.

E tudo correu mal, como a verdade que o meu corpo vomitara àquela sombra. Lisboa parecia enxotar-me, fechou-me a torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos, avariou-me os eléctricos e impediu-me de comer pastéis.

E nesse momento só eu e Lisboa sabíamos que tudo tinha acabado antes de começar.

A terceira vez que vida brincou comigo, foi quando finalmente coloquei os pés na Torre Eiffel e ela devagar olhou para mim, baixou-se e acarinhou-me o cabelo. Via a desilusão no seu esqueleto férreo quando a Valsa dos Monstros voltou a tocar, e eu já sabia que era para mim. E assim, quando cheguei a Paris, cresceu em mim o sonho de ver Lisboa na minha janela.

Quando te conheci e me disseste que gostavas muito de Paris, pensei que a vida se estava a rir de mim mais uma vez. Nessa altura já Lisboa e eu não nos podíamos ver, já éramos demasiado confidentes para nos ouvirmos, ainda que a Valsa nunca mais tivesse tocado. Como seria possível? Seria que a maldita França nunca me deixaria em paz? Não, eu não queria voltar e não queria acender o televisor e ver de novo uma história francesa que não me cabia no corpo desajeitado de Amélie desempregada, que ficou de parte por não ter jeito suficiente para albergar um papel com o qual nasceu.

E sobretudo, eu não queria ouvir aquela Valsa outra vez.

Mas Paris voltava na tua boca. Uma e outra vez. Às vezes eu dizia-te que sim, outras dizia-te que não. E tu esquecias e voltavas a lembrar. A vida não parava de brincar comigo e eu não parava de me indignar com ela.

A Valsa voltou a tocar contigo em Lisboa em noites em que te amava demais e sentia que estavas longe de mim, que pensavas em alguém que não era eu. Á tua janela, a valsa dos Monstros lembrava-me quem eu era e escarnecia cada pedaço horroroso da minha imagem. E Paris vinha no vento e parava na tua janela. E o meu amor desajeitado encolhia-se sobre si mesmo. E eu tapava os ouvidos.

Que Paris se fodesse.

Mas tu abraçavas-me e dizias-me que eram só fantasmas o que eu via naquela janela. Que me amavas demasiado. E tinhas a magia na voz ao baixar o volume da Valsa enquanto eu adormecia no silêncio dos teus braços.

Mas cada vez fui sendo mais desajeitada no meu papel de Amélie e cada vez afastava mais aquele filme da memória da minha carreira. E dei por mim de cigarro descolado do coração. De janela limpa e de amor remendado.

E um dia, sem que eu pudesse prever, a Valsa voltou a tocar. Preencheu a noite e fez eco nos azulejos. Eu acordei surpreendida e percebi que não era para mim que ela tocava, era para ti. E senti-me um monstro.



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