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Friday, December 16, 2011

Mas, para todos os efeitos, continuavam inexperientes.

Ela entrou na sala, mas ele já lá estava. Havia um ruído de fundo que roía como uma traça o background daquela cena. E eles falavam entrecortados, de forma casual, entre as vozes animadas dos outros que por ali andavam. O ruído das vozes impedia-os de ouvirem com nitidez a música que passava na rádio, e que ambos, sem notarem trauteavam com os pés. Até que alguém achou que havia demasiado ruído na sala, e apagou o rádio. No silêncio estreito daquela confusão, a conversa banal entre eles morreu; ouviam o eco das suas próprias vozes. Por isso, pousaram o copo e voltaram para casa, como sempre faziam.

No dia seguinte, a cena repetia-se, monotonamente, sempre com a mesma intensidade frouxa. Estabelecia-se sempre uma conversa causal que não significava nada sem que no entanto, eles se sentissem desconfortáveis. Ela falava um pouco sobre o tempo, sobre as greves da semana, a chatice de ter que ficar até mais tarde no trabalho. Ele falava do bom que era almoçar sem falar de trabalho, falava das férias do Verão e dos livros de banda desenhada. E aceitavam naturalmente esse limite da sua relação – não se pode amar toda a gente. E mantiveram-se casualmente assim por semanas indeferidas, num mar plano e doce, sem que existissem ondas ou tremores. Boiavam um no outro.

Um dia, porém, ele entrou na sala e ela estava a falar sobre o seu baixo. Casualmente, como sempre, ele disse-lhe que também tocava baixo. “Ah, então também gostas de ouvir o que escorre por detrás das músicas?”Ficaram mais do que o costume a trocar várias impressões sobre isso, sem que no entanto, se sentissem subitamente apaixonados um pelo outro. No fim, ele disse “ devíamos experimentar tocar essa música que tu gostas. Eu também sei tocar guitarra, podemos experimentar”.

Ela aceitou de imediato, porque a fascinava aquela simbiose da música partilhada. Tentara algumas vezes, sem muito sucesso. Há sempre muitos sapos a beijar no caminho – fora uma lição que lhe ficara desde pequena.

No dia seguinte, perante uma audiência curiosa eles sentaram-se frente a frente. Antes de começarem, avisaram que eram ambos inexperientes.

Depois as luzes fecharam-se e ela começou a tocar, sentindo-se estranhamente nervosa. Devagar, sem entrar na música, ele começou lentamente a despi-la. Beijou-lhe o pescoço que oscilava naquele tom grave e profundo que só o baixo capta. A audiência perdeu a respiração e congelou-se. A luz baça pousava-se apenas nela e ele continuou de forma sensual a tocar-lhe todas partes do corpo. Há medida que aquele prazer lhe preenchia o corpo, de olhos fechados, a linha de baixo foi ficando mais intensa. E num pequeno clímax, ela abriu os olhos e olhou-o fulminantemente. Ele tirou a camisa que lhe faltava e a guitarra entrou na música. Primeiro devagar, completando aqueles pequenos espaços de som vibrante, depois mais depressa, estendendo-se numa melodia ousada que aumentava as notas dela. E ela gritava, no seu tom baixo, a seu tempo enquanto ele ia acrescentado pedaços irregulares daquele amor que faziam em conjunto. Olhavam-se agora de forma provocatória e simbiótica, enquanto a guitarra se tornava cada vez mais forte, cada vez mais poderosa, sem nunca ameaçar, no entanto, a beleza dos sons repetidos que ela deixava escapar.
E presos àquela inevitável paixão, conjugaram-se ambos para o mesmo fim. Com a mesma força, a guitarra chegou ás mesmas notas do baixo, tocavam agora a mesma melodia; encontraram-se e os seus corpos misturavam-se num prazer demorado e intenso que fazia corar a audiência. Quando a música atingiu o seu auge, eles atingiram o orgasmo mais violento que haviam experimentado: o Amor explodiu e desfragmentou-se em pequenas ondas de prazer que os electrizaram, muito para além de terem desligado os amplificadores.
Quando a última onda de som abandonou a sala, a audiência, envergonhada, aplaudiu timidamente. Outros saíram simplesmente da sala.

Eles vestiram-se, pegaram nos instrumentos e saíram da sala sem trocarem uma palavra. Nunca pensaram, um dia, casualmente fazerem sexo em público.




Thursday, December 15, 2011

Devolva-me

Foi ás cinco e cinco da tarde que voltei a entrar no meu apartamento. A tarde era uma chuva miúda, a escorrer por entre um dedilhar triste de guitarra.
Ele tinha ficado preso à cadeira do café onde nos costumávamos encontrar há alguns meses atrás, quando estávamos terrivelmente apaixonados um pelo outro, mas nenhum de nós o dizia. Hoje, pouco disséramos, e faláramos tanto.
Sete dias atrás, ele procurara-me, e sem qualquer discurso prévio, disse que me tinha traído. Os seus olhos encheram-se de lágrimas que nunca chegaram a cair. A tarde era de chuva miúda como a de hoje, mas a guitarra ainda não tocava. Felizmente, eu estava sentada, se não teria sido eu a cair e eventualmente salvo algumas lágrimas que se espalhassem pelo chão.
Fora uma frase curta e dita com pouca respiração, o libertar de uma bolha que lhe começara a crescer e com a qual, ele afinal, não sabia viver.
As minhas bolhas, dentro dos meus pulmões ficaram subitamente caladas. Uma névoa de vazio invadiu a minha respiração, como se a cada segundo procurasse uma “não pergunta” para ouvir uma “não reposta”. Senti, como um fio que se corta, a nossa intimidade a fugir-me das mãos.
Sempre pensei que se isto acontecesse um dia, eu poderia finalmente atirar-lhe um vaso, como nos filmes. Mas percebi que isso acontece a quem tem força para pegar no vaso e eu não tinha. Seria preciso talvez actuar aquela cena muitas vezes, para sentir a adrenalina de lhe esmagar a cabeça numa porcelana, e eu era só uma amadora a subir ao palco pela primeira vez.
Ele perguntou-me se eu o podia perdoar. Disse-o sentidamente, sem referir pormenores e acrescentou que continuaria a amar-me, mesmo que eu não o perdoasse.
Mas nessa altura a guitarra começou a fazer-se ouvir e senti ao longe uma janela aberta, de onde se escapava um pássaro. Pedi licença, afastei os vasos delicadamente do caminho e fui embora, pedindo exageradamente desculpa a todas as pessoas que encontrava no caminho.

Quando fiquei sozinha, abateu-se uma tristeza sobre mim e mais tarde nessa noite uma necessidade de vingança. Sempre pensei durante o tempo em que estivéramos juntos, que não tínhamos uma relação – estávamos simplesmente apaixonados. Pela primeira vez perguntei-me quando é aquilo tinha acontecido, quando e com quem.
No dia seguinte quando uma amiga passou pelo meu apartamento e me perguntou se estava tudo bem, menti-lhe envergonhada com o facto de ter estado apaixonada tão profundamente com alguém que me traíra.
Não fazia diferença se ela sabia, mas fazia diferença que fosse eu quem lhe dissesse. Era como se eu fosse uma mulher muçulmana, a pedir desculpa por ter sido violada.
Talvez ela soubesse, pensei eu quando ela se foi embora. Se calhar só tinha vindo para me consolar.
Todo o apartamento me falava dele, toda a minha vida me falava dele. Agora sem ele, teria que redecorar tudo, desde os objectos que estavam em cima da estante à minha pele. Que faria eu com as minhas memórias falsas? Oh, mas não são falsas, era o que ele me diria, que fui tudo um erro. Um terrível engano do momento, uma tentação espontânea, e que afinal somos todos humanos. Mas era a mim que me doía continuamente e de repente pus-me a relembrar qualquer oportunidade que tivera de o trair. E dei por mim a lamentá-la. Devia ser mais humana, pensei eu. Devia cometer mais erros e amar mais.
Hoje no café fora isso exactamente que ele me dissera. Que me contara para que pudesse confiar nele uma outra vez. E que esperava que eu o conseguisse perdoar, porque ele não imaginava a vida sem mim. E antes que ele pudesse terminar a frase em que me dizia que eu era bem melhor que a rapariga com quem tinha estado, respondi-lhe que eu não sabia o que era perdoar. Ele olhou-me confuso.
A não ser que haja perdão por esta vergonha que sinto, terminei eu.
Foi um erro, disse-me ele novamente, quase desesperado. Eu sei, disse-lhe sinceramente. E tu és humano, como todos. Ele anuiu, com as lágrimas finalmente expostas.
Eu também quero ser, disse-lhe. Ele olhou-me espantado.
Por isso, hoje, não compreendo, só sinto.  



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