Quando
o pai lhe pediu para descer até à sala de estar, Sofia deixou o quarto que
cheirava a rosas e a túlipas frescas e demorou-se pelos corredores brancos da
enorme vivenda onde vivia. O seu vestido amarelo - pálido esvoaçava como uma
ave em equilíbrio ao sabor da corrente.
O
seu sítio preferido era um canto, junto à entrada de um dos quartos
semi-abandonados à espera de visitantes que sempre tardaram em chegar. Dali,
ela via a casa caíada de silêncio, mantendo-se numa sombra estratégica que a
isolava de tudo.O cheiro das flores vinha do jardim selvagem, embrutecido pela
falta de pessoas que foram deixando a vila ao longo dos anos. O pai de Sofia
fora um dos que ficara, quando a mulher morrera ele fechara-se atrás das
cortinas da casa, como se de si próprio fechasse as janelas. Sofia crescera
naquele ambiente nostálgico e doce, em que tudo eram sombras e expectativa.
Quando era pequena, divertia-se a correr pelos
pinhais que se estendiam ao longo de um dos lados da enorme casa, o cheiro
fresco das pinhas crepitava como uma fogueira e Sofia sentia a liberdade como
um tapete vermelho estendido aos seus pés que ela pisava devagar, com medo de
sujar.
Mas agora, quase uma mulher, Sofia fartava-se
daquela vida arrastada que levava entre a casa branca e a pequena vila, as
mulheres rudes que lhe tapavam o vestido ou a mandavam compôr-se quando ela
aparecia esfarrapada das suas explorações às falésias, que enclausuravam a vila
na sua pequenez. Por isso, quando naquela tarde de Verão o pai a
chamou à sala e lhe disse que chegara a hora de partir para a cidade, Sofia
acentiu. Voltou para fazer a sua mala, e equanto olhava pela janela a ponta de
mar, não sentia saudade nem excitação.
Nesse
Outono, Sofia partiu para a cidade de comboio. A viagem encheu-lhe o coração
como uma bolha em equilibrio, antes de rebentar. Os arranha-céus, as estradas
compridas e escuras, os altos candeeiros que cuspiam luz indesejada à noite,
tudo isso Sofia detestou desde o primeiro momento. Dentro do seu pequeno
apartamento incrustrado num prédio de tijolo, com umas minúsculas escadas de
salvação nas traseiras, esforçava-se por não ir à janela e não ver toda aquela
amálgama de pessoas e barulho.
Odiava
intensamente os sinais de trânsito e os carros pretos e vermelhos que chiavam
como loucos. Mas o que ela odiava ainda mais eram as pessoas, a forma como
falavam alto e se vestiam de forma exótica. O pai dissera-lhe, antes de partir
“Tem cuidado Sofia, as pessoas da cidade são perigosas”. E ela via agora esse
perigo, a loucura que destilava da sua respiração. Era como se não existessem
regras, tudo era permitido dentro daquele grande jogo de luzes.
No
fim do Outono, a cidade encheu-se de chuva miuda e o sol baixo deixava nos
prédios cinzentos um tom de mel. Farta de estar escondida, Sofia decidiu dar um
passeio até ao parque da cidade. Com a gola do caso subida, foi andando por
entre as árvores altas como os prédios, as grandes avenidas do jardim estavam
cheias de folhas secas amarelecidas pela chuva e faziam do chão um tapete fofo
e silencioso. No coração do jardim, um lago enorme recortava a paisagem aos
olhos de Sofia. A água calma, balançava ao som de música que vinha da
redondeza, dando-lhe vida.
E ao
som dessa música, um rapaz vestido de cores alegres abria os braços, convidava
o vento a entrar pelo casaco. Sofia viu-o de costas e aproximou-se sem se
aperceber. Mas ele viu-a e sorriu-lhe “Que bela tarde de Outono”. Ela
respodeu-lhe que sim, que era uma bela tarde, sem conseguir tirar os ouvidos da
rede daquela música eléctrica. “Vives aqui?” perguntou-lhe ele enquanto dava
pequenos pontapés nas pedras e olhava o cimo das árvores, perfeitamente
enquadrado com o ambiente. “Sim, desde o início do Outono”. Rapidamente
ele lhe estendeu a mão “Sou o Victor, também cheguei há muito pouco tempo, vivo
ali do lado Norte”. Ele falava rápido, mexia-se com aquela pressa que Sofia via
nas pessoas, e pela primeira vez gostou daquela falta de regras que o fazia ser
tão natural como o simples cair das folhas.
Deram
uma volta pelo parque, sempre num passo acelerado, ele dizia-lhe “Mal posso
esperar pela neve, isto deve ser ainda mais bonito tudo branco”. A chuva
tornara-se mais intensa mas isso não os impediu de subir ao coreto do jardim,
tomar um café numa esplanada com chapéus redondos e mesas de vidro transparente
como a água. Só quando a noite chegou ele falou em apanhar o autocarro. Sofia
pouco sabia dos transportes públicos, apanhava sempre o mesmo metro para ir
para a escola que frequentava. Mas Victor dirigiu-se à paragem do autocarro
decidido. “Para ondes vais?” perguntou-lhe, enquanto olhava os horários e os
destinos. “Para o centro” disse Sofia a medo e como se isso não resolvesse o
problema, disse-lhe a morada. “Ah, mas o 22 pára lá, olha aqui”. Um pouco
envergonhada, ela seguiu o dedo dele e consultou o placard, onde estava escrito
que o autocarro apareceria dentro de três minutos. As luzes piscavam
intensamente, uma mulher de cabelo comprido enrolado numa encharpe baloiçava as mãos dentro de um casaco
larguíssimo enquanto dois outros jovens conversavam animadamentee fumavam um
cigarro. “Amanhã gostava de ir até ao rio, queres vir comigo?” disse Victor,
enquanto olhava o fundo da rua para ver se o seu autocarro lá vinha. “Podemos
encontrarmo-nos lá depois do almoço”. Foi só o tempo de Sofia dizer que sim, e
desaparecer dentro do autocarro que afinal parava mesmo à porta da sua casa.
No
dia seguinte Sofia encontrou-se com Victor ao pé do rio. Na verdade, parecia
que ele estava sempre um passo adiantado, como se controlasse o tempo. Pedia a
sofia para lhe mostrar a cidade, mas Sofia não conhecia a cidade e foi preciso
que ele lha mostrasse sempre de olhos no ar, com a cabeça levantada para o infinito.
Percorreram as ruas a pé, o frio escapava-se entre as suas respirações,
saboreavam os pequenos cafés pelo caminho, os chocolates quentes que bebiam, as
pessoas com quem Victor falava, sempre desejoso de tudo o que lhe aparecia pela
frente. Foi em menos de uma semana que Sofia sabia estar irremediavelmente
apaixonada por ele. Era uma atracção tão mortal quanto a dum poço fundo cheio
de segredos.
Victor
apresentou-lhe os seus amigos, convidou-a para os jantares em sua casa e Sofia
descobriu-se uma pessoa cheia daquela adrenalina. Falava alegremente com as
pessoas, respirava as suas experiências, divertia-se naquelas noites
intermináveis onde saíam para dançar e cantar até que o corpo estivesse
esgotado. Os dias eram preenchidos, as gotas do dia lambidas até estarem secas
e cada vez que Sofia sentia estar mais dentro daquela grande festa, mais se
sentia apaixonada por Victor. Quanto mais ela alcançava, mais havia para
alcançar.
Os
dias avançavam sem piedade, não dando hipotese a qualquer hesitação. E um dia,
enquanto estavam na casa de Victor para uma festa, Sofia procurava-o por entre
uma pequena multidão que fazia petiscos na cozinha e dançava na sala. Como não
o encontrando, perguntou ao seu amigo João, que vinha da varanda. “Está lá em
cima, no terraço” disse-lhe João com um ar profundo que Sofia não notou.
Agradeceu-lhe e subiu as pequenas escadas da varanda, e encontrou Victor
deitado no terraço a olhar as estrelas.
E
como não resistindo àquele surrealismo, deitou-se com ele e beijou-o como se
tentasse sorver as estrelas daquele Universo. Mas antes que conseguissem dizer
algo, João apareceu no terraço e chamou Victor. Sofia deixou-se estar sentada
com uma ponta de frio enquanto João esperava impacientemente que Victor
descesse as escadas à sua frente. Mas antes de se ir embora sacudiu esse frio e
voltou a entrar no quente da festa, decidida a não esperar mais pelas
expectativas.
Mas
nessa semana algo mudou. Combinaram um cinema numa quinta-feira à noite, mas
Victor não apareceu. Ao invés disso, Sofia viu o filme com os seus os seus
amigos, de quem agora ela também era amiga. Victor tinha ido a outra festa e
não poderia vir hoje. Mas o filme soube-lhe a pouco, Sofia olhava a porta do
cinema a cada cinco minutos e consultava o seu telemóvel. Tentou ligar-lhe, mas
ele não atendia. A seguir ao cinema decidiram ir a um bar beber um copo. Sofia
seguiu-os incapaz de se manter quieta, percorrearam as ruas da cidade quase
deserta, por entre as luzes incandescentes. Um frio apoderava-se dela, sem que
o permitisse a entrar; João falava-lhe e ela respondia animada, lutando para
que aquela nostalgia não a consumisse.
Mas
era tarde de mais. Sem dar por isso o Inverno tinha chegado enquanto ela estava
distraida e na primeira noite em que nevou, Sofia recebeu um telefonema de
Victor a avisá-la que se ia embora da cidade. Lá fora estava tudo branco e quis
dizer-lhe isso, mas compreendia que Victor estava sempre à frente, até do
Inverno. A neve para ele já tinha chegado.
A
festa de despedida ficara adiada para depois do Natal, e por isso ela fez a
mala para voltar para casa onde o pai a esperava para a ceia. O Inverno ali era
rigoroso, mas sem neve. O vento uivava enquanto Sofia sem nada que a ocupasse,
olhava pela janela enquanto os dedos tremiam de falta de adrenalina. Cada segundo
que passava, Sofia sentia Victor cada vez mais longe, como se ao estar ali, no
fim do Mundo, perdesse a capacidade de se desenvolver e de o agarrar.
O
tempo estava parado, no relógio de parede da casa e dolorosamente o Natal
chegou mas em tudo Sofia sentia a falta. Quando voltou ao seu pequeno
apartamento a neve cobria toda a entrada do prédio e estendia-se pelas
ruas. Os carros passavam e as pessoas andavam debaixo de um nevoeiro de neve.
Era como se tivessem desligado o som da cidade e tudo acontecesse num filme
mudo. Sofia vestiu-se e apanhou o autocarro à porta de casa, trocou para
apanhar o metro e chegou antes de todos à festa de Victor. Ele lá estava,
exuberante e preenchido como sempre, cheio de planos e vida. Sofia percebeu que
não o veria mais e sentiu com um jacto de consciência a falta que ele lhe ia
fazer.
A
Primavera chegou quando Sofia não conseguia impedir-se de andar pela cidade.
Aprendera de cor os caminhos de Victor e os cafés que ele gostava. Aprendera as
pessoas com quem falava e os sitios onde se demorava. E sobretudo aprendera
aquela azáfama, sem a qual não conseguia viver. Por isso gastava-se nos
caminhos da cidade inesgotável, chegava a casa tão cansada que se atirava para
a cama e dormia profundamente. A sua obcessão tornou-se tão forte que deixou de
sair com os amigos de Victor que conhecera. Nada a deixava mais proxima dele do
que os sussurros da cidade ao seu ouvido. À noite deixava-se ficar pelos cafés
da cidade, vestia-se de preto e expunha-se debaixo das luzes dos candeeiros,
para ver as sombras dos seus passos.
A
única pessoa que continuava a ver era João. Lembrava-lhe Victor, um Victor que
ela conseguia agarrar e por isso menos entusiasmante. João levava-a pelos
mesmos caminhos, mas cultivava um silêncio que lhe era incómodo. Quando o Verão
chegou, João visitou-a no seu apartamento. A cama estava por fazer, a roupa
amontoava-se há semanas pelo chão, os livros equilibravam-se em cima do
lava-loiça e o microondas cheirava a comida ressequida. Sofia convidou-o a
entrar com simpatia, ignorando os seus olhos inquisidores. Sentaram-se na sala,
com o calor do Verão a entrar pela janela enquanto Sofia punha a música no
volume mais alto e abria uma garrafa de vinho escuro como o sangue.
“Vais
voltar para casa, agora que o ano acabou?” perguntou João. Sofia encolheu os
ombros “Acho que não”. João fez um compasso de espera, como um jogador de
xadrez experiente “ Ele não vai voltar, Sofia”. Mas Sofia olhou-o magoada e
disse-lhe “Nem ele nem eu vamos voltar”. E enquanto o calor se entranhava no
pequeno apartamento caótico, por entre as persinanas corridas, João beijou-a
enquanto afastava a roupa em cima da cama e a deitava com uma paixão
nostalgica. Fizeram amor enquanto pela janela entrava, vindo das outras janelas
o Come Here, de Kath Bloom.
No fim da tarde, João vestiu o seu casaco de cabedal, saltou despreocupado por
cima dos CD’s que estavam no chão e deixou Sofia a dormir.
Mas
no dia seguinte Sofia apanhou o comboio de volta para a sua vila sem dizer nada
a João. O pai recebeu-a com aquela indiferença passiva de sempre e Sofia
achou-se num sossego que a magoava e que ela sadicamente procurava. O resto do
Verão passou-se entre os infindáveis pores-do-sol, as noites do baloiço com a
brisa da noite sem palavras e um cansaço de não fazer nada, que era cada vez
mais forte. Num desses dias, João bateu à porta. Amolecidos por aquela vida
opaca, ninguém apareceu para abrir e Sofia desceu as escadas e viu João nas
suas calças de ganga claras, calmamente à espera no alpendre. Os seus olhos verdes
cor-de-limão brilhavam do sol e estendeu-lhe os braços num longo re-encontro.
Sofia
mostrou-lhe a casa, o seu quarto branco com a longa cama de casal que tinha
sido dos seus pais, a vista para o Mar da janela. Depois sairam para o jardim.
O dia estava quente, insuportavelmente quente e sentaram-se num banco do
jardim. Estavam sós como se o Mundo tivesse fugido deles. Aquele silêncio tão
característico instalou-se como um anjo de pedra. Sofia pôs-se de pé no
banco e sentou-se na dobra mais alta, vendo a cara de João de cima. Ele olhou
para ela, com dificuldade franzindo os olhos frágeis e levantou-se também. Deu
uns passos no jardim e abriu a torneira da mangueira para por as mãos debaixo
de água. “Cuidado, a água está muito quente” disse Sofia. O primeiro jacto de
água que saiu estava de facto a ferver, mas em menos de cinco segundos a água
gelada da torneira brotou-lhe nas mãos. João pegou na mangueira e atirou-a num
relâmpago a Sofia que gritou com a respiração parada. A água gelada
escorria-lhe pelas costas enquanto João ria como um louco. Completamente
encharcada, o coração de Sofia pulsava de adrenalina enquanto roubava a
mangueira de João e o fazia provar daquela delícia. E quando o êxtase se
apoderou deles, rindo como delinquentes no jardim João disse-lhe “Ele voltou
Sofia”.
Sabia
de cor os autocarros, sabia as ligações do metro. Uma senhora com duas crianças
parou para lhe perguntar onde ficava o supermercado mais próximo. Sofia deu-lhe
a morada e as indicações, sem pestanejar. A vida da cidade corria em câmara
lenta, e ela podia apreciar cada detalhe devagar. Apanhou a publicidade à porta
do prédio, fez uma refeição rápida que comeu em cima da cama e saiu para ir
comprar cigarros. Havia três anos que morava ali, e não pensava ir embora.
Adorava a luz do sol reflectido nos vidros dos prédios e a música que vinha das
casas. Havia sempre uma guitarra solitária na rua ou uma criança que corria
atrás da bola. Os cães espreitavam pelas cortinas quando chovia e a água caia
pelos beirais. Com os cigarros pediu também o jornal do dia, ao dono da
tabacaria. Em vez de voltar para casa deu a volta ao bairro, e para aproveitar
o sol sentou-se num banco dum pequeno jardim a ler o jornal. Não tardou muito a
que uma qualquer música inundasse o ambiente, Sofia levantou os olhos para ver
de que janela vinha e viu uma rapariga pálida encolhida por detrás dos vidros.
Lembrando-se de si própria acenou-lhe. A rapariga correu as cortinas, mas Sofia
viu-a a espreitar. Antes de ir embora para casa, Sofia deixou-lhe na caixa do correio
um roteiro da cidade, com os melhores sítios para se estar num dia de sol.Nessa
noite, como em tantas outras foi até ao rio depois de ter passado por vários
bares. As noites eram sempre animadas e Sofia conhecia metade das pessoas
daquela zona. Ali se tinha apaixonado vezes sem conta, paixões tão rápidas como
fósforos que se desfaziam nas suas mãos. A última era um estudante de cinema
mais novo do que ela cinco anos que se mudara para a cidade.No entanto, quando
chegou ao Rio, chegou sozinha. E como acontecia em muitas daquelas noites,
também João lá estava. A camisa impecável baloiçava com a brisa da noite.
“Onde
está a tua namorada?” perguntou-lhe Sofia. “Em casa, a dormir”, respondeu João
debruçado no paredão sentindo o cheiro forte a iodo. “Devias estar com ela,
sabes”, disse Sofia como dizia tantas vezes. Mas João parecia ter um desapego
natural, como se aquele anjo de pedra andasse com ele e nunca o largasse. “Não
estou apaixonado” foi a sua resposta honesta. “Mas continuo à espera que isso
aconteça, é possível”.E Sofia sabia bem o que era a vida sem paixão. Como
muitas vezes acontecia aproximou-se dele e beijaram-se como naquela tarde em
que a música entrava sem pedir licença e os virava do avesso. Passaram a
noite juntos naquela mesma cama de Sofia, com a janela aberta sem vergonha da
sua excentricidade. De manhã João saiu com a vida presa nas mãos e um fio
gelado a escorrer-lhe pelas costas.
E um
dia Sofia abriu a caixa de correio e viu uma carta de Victor pousada contra o
metal frio. Era um convite de casamento. Sofia abriu-o e viu que a data do
casamento seria dali a dois meses, por baixo duma fotografia de Victor e da sua
noiva, enfiada numa saia-casaco branco enquanto ele sorria flacidamente
apertado pela gravata. O casamento seria no campo, para onde se queriam mudar.