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Thursday, January 05, 2012

To be or not to be.

A mãe pos-lhe a mão na cabeça, tocando suavemente os cabelos loiros finos da criança esguia. Era um ritual do qual muitas vezes mais tarde ele se lembraria. A mãe olhou-o e disse-lhe “Um dia vais tocar piano muito bem”. Depois deixava-o ir brincar o dia inteiro pelo areal e pelos bosques cheiros de amoras silvestres. Ele saia de casa de manhã e debaixo da brisa fresca percorria a praia com os seus amigos, caçavam carangueijos e faziam casas nas grutas impregnadas de algas.
Só à noite, depois do banho profundo, se juntava à mãe na grande sala que cheirava a maçãs. Ao pé da janela, o piano espreitava-o. Um ano antes, por curiosidade tinha passado as mãos pelas teclas e ficara deslumbrado com a textura e o som do instrumento. Logo ali, ficara amigo do piano. Mas era pequeno demais para permanecer sentado mais do que cinco minutos, por isso limitava-se a ir tocando nas teclas, dar-se ao prazer de sentir aquela textura e ouvir a mãe dizer-lhe que um dia o tocaria a sério.   

A paixão dele pelo piano, apaixonou-me a mim. Dois dias depois de o conhecer, deitados na cama, ele confessou-me que sempre tinha querido ser pianista. Quando lhe perguntei porque não era, ele suspirou longamente e puxou a roupa para lhe tapar o corpo nú.
“Não é fácil, nunca cheguei a ter aulas quando era criança e agora vai sendo cada vez mais tarde”. Achei aquela resposta estranha e ao mesmo tempo irremediavelmente atraente, na forma como perpetuava um sonho que pretendia matar pelas próprias mãos.
E esse sonho, valia-lhe uma vida dura. Passava pelos sítios sem os adorar, arranjava empregos que o acidificavam por nunca o preencherem e tinha um natural desapontamento para tudo, especialmente pelas pessoas.
Um dia encontrei-me com ele no seu pequeno apartmento. Perto da janela, o piano permanecia intocável e meio-escondido pela luz do entardecer. Ele sentiu-se desprotegido e levou-me para o quarto; essa foi a primeira vez na vida que senti ciúmes.
Como quase tudo na sua vida, também o nosso amor teve um fim quase imediato. Ele não sabia estar comigo e eu não sabia estar com um amor que já não era. Da última vez que gritamos, sai a correr com a certeza que era a última vez que via o piano. Ele, ligou-me mais tarde e uns dias depois, sem qualquer réstia de paixão para pôr em cima da mesa, tomamos um café.
Eu, ainda assim, eu conhecia-o bem o suficiente para saber que a vida dele continuava a mesma miséria de sempre. Com os olhos inchados das insónias, ele olhava para mim à espera de um sonho qualquer, pedindo-me uma lanterna para lhe dizer qual era a direcção do túnel. Disse-lhe para dormir. Disse-lhe para procurar ajuda.
“És a minha única ajuda” disse-me ele. Não o levei a sério, até porque sabia que quando não dormia o fatalismo extremo se apoderava dele. “Que queres fazer?” perguntei-lhe.
E ele começou o seu discurso mais uma vez. O discurso que eu tinha ouvido centenas de vezes durante o curto espaço de tempo que estivera mergulhada no seu coração.
“Já consegui juntar mais algum dinheiro. Vou finalmente ter aulas para aprender a tocar”. Não me mexi um milimetro, consegui nem sequer pestanejar. Depois de um longo silêncio em que tentei que ele percebesse como era repetitivo, sem no entanto ser bem sucedida, levantei-me e fui-me embra.
No dia seguinte ele voltou a procurar-me. A sua figura andrajosa puxava-me a manga da camisa como um miudo e deixei-o entrar na minha casa, ciente de que não tinha um piano para o acalmar.  “Senti saudades” disse-me. Eu continuei sem responder, algo surpreendida. “Porque não falas comigo? Desde ontem que não falas comigo.”
Ponderei durante alguns segundos mas depois disse-lhe que já não aguentava mais aquele discurso repetitivo dele, sobre um sonho que não planeava cumprir. “Para quê?” disse-lhe. “Aprende de uma vez a tocar piano ou então esquece isso de vez. Tu só gostas da ideia de ser pianista.”
Tive a sensação que mesmo que o piano ali estivesse ele teria vergonha de lhe passar as mãos pelas teclas. Não voltei a vê-lo.

Hoje, um ano e sete meses depois recebi uma carta sua.
“Espero que não te importes que te escreva mais uma vez a falar dum assunto repetitivo. Mas este assunto sou eu, não existe mais nada para além disso.
Queria dizer-te que escolhi esquecer a ideia de ser pianista, porque sei (sempre soube) que nunca seria. Sou agora mais honesto para mim próprio e não me alimento de sonhos ridiculos – como tu lhe chamarias”.
Não sou ainda assim mais feliz. Vendi o piano, e deixei de ter a sua companhia à noite, deixei de poder sentir a textura das teclas. Ainda assim não sou mais feliz, tal como não era dantes.“
A carta terminava assim. E ao lado vinha um papel oficial, avisando-me que ele falecera. Eram demasiado covardes para escreverem que ele se tinha suicidado.
E afinal, era a ideia de ser pianista que lhe salvava a vida. 

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