Quando comprei aqueles all star
tudo regressou como se de um milagre se tratasse: o vento a bater-me no cabelo,
as t-shirts frescas de Verão, as horas passadas na rua a falar de nada. O dia
estava quente, com aquele calor que sufoca e queima a respiração. Mas a vida era cinzenta e o bolor começava a
apoderar-se terrivelmente de mim. Parecia que ainda não tinha vivido tudo, que
era ainda pequena demais para morrer. Quando os calcei, voltou a mim esse
sentimento de ser jovem. Usava-os aos
fins-de-semana, nas férias. Usava-os quando saia durante a semana depois do
jantar. Esperava pelo metro sentada no chão, as pernas dobradas por cima das
calças de ganga. Tocava nas solas e sentia aquele breve frenesim de fazer parte
de Mundo e ao mesmo tempo ser ignorada por ele. Um dia percebi que ainda não
tinha chegado a minha hora e decidi calçá-los definitvamente. Eles moldaram-se sem
surpresa e juntos fugimos e vimos cidades estrangeiras, quartos de hotel,
autocarros vadios. Vimos tantas ruas e estações de comboios, vimos tanta gente,
tantas línguas. De tanto gostar deles, os meus all star começaram a ficar velhos. Apareceram os primeiros rasgões,
a borracha da sola foi-se soltando. Primeiro, deixei de os poder usar no
Inverno, depois foram sendo empurrados para o fundo do armário. Mas ocasionalmente
quando o Verão voltava, eu calçava-os de novo, mesmo rotos. Sentava-me nas
pedras, nos bancos com as pernas dobradas e fumava um cigarro. Aquela sensação
ainda me percorria e iluminava-me por mais alguns dias. Até que finalmente, na minha
ultima viagem os all star deram de
si. Já não podiam mais. Sem tecido e com as solas totalmente gastas, guardei-os
no armário, sabendo que não podiam servir mais. E sabendo que não mais os
calçaria, sabia também que o ser jovem
tinha terminado. Na semana seguinte fiz trinta anos.
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Sunday, January 26, 2014
Sunday, January 12, 2014
Resoluções de Ano Novo
Sei que o útimo dia do ano ou o
primeiro do ano seguinte são iguais a tantos outros. Como e bebo como sempre,
apago as luzes e deito-me para mim mesma. Há quem festeje toda a noite e grite
desvairada a fugacidade de mais uma porção de tempo que se esvaiu. Para muitos
é só mais um pretexto para beber e para dar uma festa. Para (muitos) outros é
certamente o cumprir de tradições só porque sim. Porque é isso que sempre se
fez e é isso que se tem que continuar a fazer. Põem-se passas na boca, agarra-se
dinheiro enquanto as 12 badaladas vão ribombando e no dia seguinte começa-se de
novo com um grande almoço e roupa nova comprada em tons de azul.
Eu sempre soube que essas
tradições não fazem sentido. No entanto passados já tantos anos novos e tantos anos
velhos, também eu tenho as minhas tradições. Gosto de arrumar os armários e
limpar da minha mesa todos os papeis que por ali se acumularam, rever as
fotografias que tirei nesse ano. Gosto particularmente de pensar onde estava e
quem era no mesmo dia há exactamente um ano atrás. O último dia do ano é assim,
tradicionalmente nostálgico. Finda essa
retrospectiva gosto também de pensar no que eu queria que mudasse, as viagens
que quero fazer, os defeitos que teimosamente vão perpectuando ainda que os
tente afastar. Raramente vou a festas, raramente bebo champagne e ainda mais
raramente me deito para além da meia-noite. Mas quando em certos anos não tenho
os meus armários para arrumar ou não posso percorrer a pé as ruas desertas e
silenciosas na noite de fim de ano, qualquer coisa em mim se agita. E aí percebo que o ritual deixou de ser apenas
um processo mecânico e passou a fazer parte de mim. Eu sou parte das tradições
que criei. Cumpri-las é cumprir quem sou.
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