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Sunday, July 03, 2016

O Poço das Almas

Foi quando a morte me bateu à porta que eu me apercebi que a vida era muito curta. Ele morreu antes de terminar a frase e eu fiquei presa naquele transe, na frase que ele nunca terminou, em todas as palavras que nos ficam presas para sempre, engasgadas e em decomposição até desvanecerem.
Desde aí que a morte dele desencadeou em mim a vida desenfreada. Tive medo que me secassem as palavras, encarquilhadas no meu tronco de pessoa, morta de pé. É inútil questionar se ele me disse tudo o que queria, porque haveria sempre mais para dizer. Isso atemorizou-me pela noite dentro, aquela certeza absoluta que também um dia, umas das minhas palavras me morreria entre os lábios, extraviada.
Espantada e incrédula com o cadáver à minha frente prometi-nos aos dois que diria a inteireza do possível na minha tão frágil existência. Que ousaria, amaria, disputaria e acima de tudo, nunca me resignaria.
E não mais a sua meia-palavra me voltou a aprisionar. Ao invés disso, no seu rigor mortis ele acenava-me que era isso mesmo, a melhor morte que se pode prometer é a que é capaz de infligir a vida em alguém.  
Mas surpreendida, comecei a ser puxada para baixo, alguém me sabotava as asas e impedia-me de ouvir o grito das borboletas. “São os vivos” disse-me ele ainda ali estendido, “são eles que te impedem de viver, não é a morte”. 

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