Translate

Friday, December 16, 2011

Mas, para todos os efeitos, continuavam inexperientes.

Ela entrou na sala, mas ele já lá estava. Havia um ruído de fundo que roía como uma traça o background daquela cena. E eles falavam entrecortados, de forma casual, entre as vozes animadas dos outros que por ali andavam. O ruído das vozes impedia-os de ouvirem com nitidez a música que passava na rádio, e que ambos, sem notarem trauteavam com os pés. Até que alguém achou que havia demasiado ruído na sala, e apagou o rádio. No silêncio estreito daquela confusão, a conversa banal entre eles morreu; ouviam o eco das suas próprias vozes. Por isso, pousaram o copo e voltaram para casa, como sempre faziam.

No dia seguinte, a cena repetia-se, monotonamente, sempre com a mesma intensidade frouxa. Estabelecia-se sempre uma conversa causal que não significava nada sem que no entanto, eles se sentissem desconfortáveis. Ela falava um pouco sobre o tempo, sobre as greves da semana, a chatice de ter que ficar até mais tarde no trabalho. Ele falava do bom que era almoçar sem falar de trabalho, falava das férias do Verão e dos livros de banda desenhada. E aceitavam naturalmente esse limite da sua relação – não se pode amar toda a gente. E mantiveram-se casualmente assim por semanas indeferidas, num mar plano e doce, sem que existissem ondas ou tremores. Boiavam um no outro.

Um dia, porém, ele entrou na sala e ela estava a falar sobre o seu baixo. Casualmente, como sempre, ele disse-lhe que também tocava baixo. “Ah, então também gostas de ouvir o que escorre por detrás das músicas?”Ficaram mais do que o costume a trocar várias impressões sobre isso, sem que no entanto, se sentissem subitamente apaixonados um pelo outro. No fim, ele disse “ devíamos experimentar tocar essa música que tu gostas. Eu também sei tocar guitarra, podemos experimentar”.

Ela aceitou de imediato, porque a fascinava aquela simbiose da música partilhada. Tentara algumas vezes, sem muito sucesso. Há sempre muitos sapos a beijar no caminho – fora uma lição que lhe ficara desde pequena.

No dia seguinte, perante uma audiência curiosa eles sentaram-se frente a frente. Antes de começarem, avisaram que eram ambos inexperientes.

Depois as luzes fecharam-se e ela começou a tocar, sentindo-se estranhamente nervosa. Devagar, sem entrar na música, ele começou lentamente a despi-la. Beijou-lhe o pescoço que oscilava naquele tom grave e profundo que só o baixo capta. A audiência perdeu a respiração e congelou-se. A luz baça pousava-se apenas nela e ele continuou de forma sensual a tocar-lhe todas partes do corpo. Há medida que aquele prazer lhe preenchia o corpo, de olhos fechados, a linha de baixo foi ficando mais intensa. E num pequeno clímax, ela abriu os olhos e olhou-o fulminantemente. Ele tirou a camisa que lhe faltava e a guitarra entrou na música. Primeiro devagar, completando aqueles pequenos espaços de som vibrante, depois mais depressa, estendendo-se numa melodia ousada que aumentava as notas dela. E ela gritava, no seu tom baixo, a seu tempo enquanto ele ia acrescentado pedaços irregulares daquele amor que faziam em conjunto. Olhavam-se agora de forma provocatória e simbiótica, enquanto a guitarra se tornava cada vez mais forte, cada vez mais poderosa, sem nunca ameaçar, no entanto, a beleza dos sons repetidos que ela deixava escapar.
E presos àquela inevitável paixão, conjugaram-se ambos para o mesmo fim. Com a mesma força, a guitarra chegou ás mesmas notas do baixo, tocavam agora a mesma melodia; encontraram-se e os seus corpos misturavam-se num prazer demorado e intenso que fazia corar a audiência. Quando a música atingiu o seu auge, eles atingiram o orgasmo mais violento que haviam experimentado: o Amor explodiu e desfragmentou-se em pequenas ondas de prazer que os electrizaram, muito para além de terem desligado os amplificadores.
Quando a última onda de som abandonou a sala, a audiência, envergonhada, aplaudiu timidamente. Outros saíram simplesmente da sala.

Eles vestiram-se, pegaram nos instrumentos e saíram da sala sem trocarem uma palavra. Nunca pensaram, um dia, casualmente fazerem sexo em público.




Thursday, December 15, 2011

Devolva-me

Foi ás cinco e cinco da tarde que voltei a entrar no meu apartamento. A tarde era uma chuva miúda, a escorrer por entre um dedilhar triste de guitarra.
Ele tinha ficado preso à cadeira do café onde nos costumávamos encontrar há alguns meses atrás, quando estávamos terrivelmente apaixonados um pelo outro, mas nenhum de nós o dizia. Hoje, pouco disséramos, e faláramos tanto.
Sete dias atrás, ele procurara-me, e sem qualquer discurso prévio, disse que me tinha traído. Os seus olhos encheram-se de lágrimas que nunca chegaram a cair. A tarde era de chuva miúda como a de hoje, mas a guitarra ainda não tocava. Felizmente, eu estava sentada, se não teria sido eu a cair e eventualmente salvo algumas lágrimas que se espalhassem pelo chão.
Fora uma frase curta e dita com pouca respiração, o libertar de uma bolha que lhe começara a crescer e com a qual, ele afinal, não sabia viver.
As minhas bolhas, dentro dos meus pulmões ficaram subitamente caladas. Uma névoa de vazio invadiu a minha respiração, como se a cada segundo procurasse uma “não pergunta” para ouvir uma “não reposta”. Senti, como um fio que se corta, a nossa intimidade a fugir-me das mãos.
Sempre pensei que se isto acontecesse um dia, eu poderia finalmente atirar-lhe um vaso, como nos filmes. Mas percebi que isso acontece a quem tem força para pegar no vaso e eu não tinha. Seria preciso talvez actuar aquela cena muitas vezes, para sentir a adrenalina de lhe esmagar a cabeça numa porcelana, e eu era só uma amadora a subir ao palco pela primeira vez.
Ele perguntou-me se eu o podia perdoar. Disse-o sentidamente, sem referir pormenores e acrescentou que continuaria a amar-me, mesmo que eu não o perdoasse.
Mas nessa altura a guitarra começou a fazer-se ouvir e senti ao longe uma janela aberta, de onde se escapava um pássaro. Pedi licença, afastei os vasos delicadamente do caminho e fui embora, pedindo exageradamente desculpa a todas as pessoas que encontrava no caminho.

Quando fiquei sozinha, abateu-se uma tristeza sobre mim e mais tarde nessa noite uma necessidade de vingança. Sempre pensei durante o tempo em que estivéramos juntos, que não tínhamos uma relação – estávamos simplesmente apaixonados. Pela primeira vez perguntei-me quando é aquilo tinha acontecido, quando e com quem.
No dia seguinte quando uma amiga passou pelo meu apartamento e me perguntou se estava tudo bem, menti-lhe envergonhada com o facto de ter estado apaixonada tão profundamente com alguém que me traíra.
Não fazia diferença se ela sabia, mas fazia diferença que fosse eu quem lhe dissesse. Era como se eu fosse uma mulher muçulmana, a pedir desculpa por ter sido violada.
Talvez ela soubesse, pensei eu quando ela se foi embora. Se calhar só tinha vindo para me consolar.
Todo o apartamento me falava dele, toda a minha vida me falava dele. Agora sem ele, teria que redecorar tudo, desde os objectos que estavam em cima da estante à minha pele. Que faria eu com as minhas memórias falsas? Oh, mas não são falsas, era o que ele me diria, que fui tudo um erro. Um terrível engano do momento, uma tentação espontânea, e que afinal somos todos humanos. Mas era a mim que me doía continuamente e de repente pus-me a relembrar qualquer oportunidade que tivera de o trair. E dei por mim a lamentá-la. Devia ser mais humana, pensei eu. Devia cometer mais erros e amar mais.
Hoje no café fora isso exactamente que ele me dissera. Que me contara para que pudesse confiar nele uma outra vez. E que esperava que eu o conseguisse perdoar, porque ele não imaginava a vida sem mim. E antes que ele pudesse terminar a frase em que me dizia que eu era bem melhor que a rapariga com quem tinha estado, respondi-lhe que eu não sabia o que era perdoar. Ele olhou-me confuso.
A não ser que haja perdão por esta vergonha que sinto, terminei eu.
Foi um erro, disse-me ele novamente, quase desesperado. Eu sei, disse-lhe sinceramente. E tu és humano, como todos. Ele anuiu, com as lágrimas finalmente expostas.
Eu também quero ser, disse-lhe. Ele olhou-me espantado.
Por isso, hoje, não compreendo, só sinto.  



Friday, October 28, 2011

Os Fosforos

Acende-se um cigarro no lugar onde costumava ter a boca, os rumores adiantam que já não tenho coracão. Sempre quis ser o Espantalho, e acabei como o Homem de Lata. 

Um dia houve em que parada na estacão de comboios troquei meia duzia de palavras com uma velha que vendia pensos rápidos a cinco vezes menos do que eles custavam. Estava um dia de chuva, sem chover e eu a reparar nos pormenores. Que inferno! – esta minha mania.  Ela tinha um tornozelo ligado e a pele enrugada estava cheia de pequenos pontos altos, enregelados. Ficamos as duas a trocar palavras pequenas enquanto ela me passava os pensos que lhe comprei por o triplo do que eles custam. Nao sei porque fiz isso.
Mas fiz.
E foi ai que ela se agarrou a mim e começou a chorar. E percebi – que Inferno outra vez! – que era agora que a verdadeira esmola saia do meu bolso.
Quando o comboio chegou, ambas direitas na passadeira olhamos em frente. Eu em silêncio, ela com a  voz elevada a pedir que Deus me abencoasse pela minha bondade.
Quando me sentei no lugar soturno da janela cinzenta do comboio, tive vontade de vomitar.

Aquela  criança contava os trocos para comer uma sandes de fiambre na hora de almoço. Lá fora chovia a sério, agua suja como aquela que enchia o copo. E que empurrava o pão para baixo, quando já nao sobrava dinheiro para mais nada.
Sentada nas escadas, comia em silêncio. Chegava-lhe o cheiro do cinzento do céu e das paredes da escola. E dos risos podres à sua volta.
“Era a pobreza a chegar” – pensava. “Espero que se fique pelos meus bolsos.”
Cansada de ter pena de si mesma, ia para casa ler a Menina dos Fósforos. Mas aquela insuportavel mania impressionista gravava-lhe na memória a imagem dos pés gelados e azuis da menina, arrastados pela neve branca ; e o desespero silencioso congelado em clarões luminosos de segundos.
E Invariavelmente, acabava a vomitar. 


Friday, September 23, 2011

True to His Own Spirit

Estas ocasiões sempre me deixaram nervosa. Uma vez mais, de janela aberta, estava eu a olhar o espelho e através dele o vestido que repousava na minha cama, impecável. Através do espelho, até parecia bonito.
Era em tudo, um vestido bonito, muito delgado e de um azul-marinho escuro. As linhas eram direitas e subtis, cheias de uma delicadeza marcante. Era em tudo, um vestido bonito.
Exceptuando que não era o meu.

Adiei o tempo, fumando um cigarro à janela de costas para o espelho. O que eu queria mesmo era escapar àquele casamento. Apetecia-me pegar no vestido e ir com ele para a praia, onde ele era apenas bonito, e eu era apenas uma pessoa.
Lá em baixo na sala, estavam à minha espera – eu já o sabia – os elogios e os sorrisos de manteiga, prontos a integrar-me num ambiente fácil e volátil.

E logo eu que não acreditava em elogios nem tão pouco em Amor. E logo eu, que não acreditava em nada a não ser em mim própria.

O meu irmão apareceu à porta do quarto e disse –me: “Não tornes as coisas sempre difíceis. É só um vestido e até te fica bem. Veste-o e vem divertir-te connosco”. Ele desapareceu antes que eu pudesse responder. Até porque ele sabia a resposta.

Tirei um outro cigarro, fechei a porta com algum estrondo e senti uma irritação chegar-se às minhas bochechas inflamadas. Atirei com o vestido ao chão e decidi que não iria a casamento algum, aturar crianças de choro fácil e adultos prontos a beberem para esquecerem os seus próprios casamentos. A realidade era tão transparente que a ideia de por um vestido bonito para tapar tudo aquilo me pareceu insuportável de mais.

A realidade era tão feia como as pessoas e os sítios. Atravessei a casa sem ninguém dar por mim e sai pela porta do fundo. Caminhei até ao mar, e por ali fiquei a ver as ondas e ouvir o vento zumbir-me aos ouvidos que estava sozinha.

Ao ondular nas dunas frias de fim de tarde completamente à deriva e com um peso morto no lugar onde antes costumava estar o meu coração, dei-me conta que a solidão estava mais comigo do que eu própria. Como um relógio cujo tic-tac era audível até quando eu dormia.

Reparei por isso numa rapariga mais velha que sentada num estrado de madeira lia um livro, apesar do vento irregular que lhe levantava as páginas. Quando me aproximei, reparei que ela não era tão nova quanto me parecera ao longe. Estendeu-me um cigarro e disse-me “ Que estás aqui a fazer? Não devias estar a aproveitar este fim de noite?” Usualmente, esta teria sido a frase que me faria deixar a conversa imediatamente, mas desta vez sentei-me e disse-lhe “ Estou a aproveitá-la”. Ela forçou um sorriso que nada tinha de elogioso. “Parece-me que estás mais a desperdiçar as oportunidades da vida. Que esperas encontrar aqui nesta praia deserta?”. As ondas, o som o mar, esta pequena liberdade de ser tudo – pensei eu. “ A minha solidão” respondi-lhe envergonhada.
Ela fechou o livro meio impaciente e olhou-me de alto a baixo, num misto de compaixão e fúria que nunca tinha sentido antes. “As pessoas não estão aqui nesta praia. A vida não está aqui, está lá fora. As vidas dos livros são para os velhos”.   Senti um nó profundo na minha garganta e pela primeira vez em anos achei que as lágrimas me iam saltar dos olhos. Fiz um esforço hercúleo para que isso não acontecesse e a minha garganta continuou silenciosa. Sentia que tudo aquilo era demais para mim como um cruzamento demasiado caótico onde eu era forçada a escolher um caminho ou a ser pisada pelos que me seguiam de perto. Quando me levantei, estava em mim um desespero tão grande que a ideia de o afogar naquelas ondas me pareceu verdadeiramente plausível.

Quando cheguei a casa, já não estava lá ninguém. Devagar subi as escadas, vesti o vestido azul-marinho, maquilhei-me e juntei-me à festa do casamento. O meu irmão guardara-me um lugar na mesa do jantar e quando chegamos à sobremesa era como se eu estivesse lá estado desde sempre. As bebidas iam e vinham, a música barata fazia-me trautear o pé e considerei até ir dançar um pouco. Afinal eu até era capaz de me enganar, e o meu vestido enganava muito bem. Quando o terceiro rapaz me convidou para dançar, eu dirigi-me à casa de banho, e olhei-me longamente ao espelho: o vestido ficava-me bem. O rapaz esperava-me no fim das escadas e eu disse-lhe “Podemos ir”. Ele voltou-se espantado e reparei que não o era o mesmo que me tinha convidado para dançar. Era incrivelmente bonito e naquele pequeno gelo em que me quedei por os ter confundido reparei que ele estava simplesmente vestido com umas calças pretas e uma camisa que esvoaçava. Timidamente disse-me “não gosto de dançar, desculpa”.

“Confundi-te com outra pessoa, peço desculpa”. A minha pose tinha desaparecido e senti-me patética naquele vestido que me afastava de mim. O que mais me custou foi o olhar vago que ele me lançou. E como eu conhecia aquele olhar, era o meu olhar. Não sabendo bem como, eu tinha voado para o corpo daquele rapaz e ele olhava-me como um espelho. E quando ia tentar salvar-me daquele afogamento, o meu par voltou no seu fato impecável e no seu sorriso brilhante. Ofereceu-me o braço, apontando-me como um deles. Antes de me juntar a ele olhei o rapaz uma vez mais e disse-lhe “podes juntar-te a nós, vem lá para dentro”.

Mas ele já ia no caminho oposto e a última coisa que lhe ouvi foi “ Apetece-me antes ir ver a praia”.

Não voltei a falar com ele. A meio da noite, quando tudo aquilo era demasiado insuportável para mim, despedi-me e fui a pé para casa, descalça e nua de mim mesma. No caminho, senti o perfume das dunas e ondulei-me por ali uma vez mais. Sem surpresa, vi a silhueta dele, sentado na areia. A lua ia alta e iluminava de forma bela a rapariga que lhe fazia companhia, enroscada numa manta velha.


Sunday, September 11, 2011

O Passado é inútil como um trapo

O Beijo. Acordou silenciosamente, tremendo. Era tão reprimido quanto isso. O soalho de madeira estava impecavelmente liso, espalmado pelo luar que inundava o quarto inteiro. Ela dormia na cama de dossel solitária encostada ás almofadas frescas de tecido branco e fresco. Como a sua pele, a sua vida e a sua casa.

Sem fazer barulho, habituado como um gato a caminhar de veludo, desceu as escadas, passou pelo salão e abriu a porta do jardim. Dali, via-se a cidade longínqua e luminosa atravessada por um rio de planície verde.

O jardim não tinha cadeiras e por isso ele caminhou pela sua relva cortada até à pequena vedação que o separava do mundo. Quando lá chegou, ligou-me.

“Sonhei com ela outra vez”. Eram três da manhã, mas como sempre eu não conseguia dormir. Quando o telefone tocou eu já sabia que era ele. De tempos a tempos acontecia-lhe. E de forma casual, respondi-lhe o que sempre lhe dizia: “Amanhã tens de procurá-la.” Como se eu soubesse o remédio que ele precisava. Como se ele tivesse uma doença crónica, que nunca se curava mas era atenuada sempre da mesma maneira.

Houve um silêncio leve na chamada, enquanto eu imaginava o cigarro que ele puxara do bolso, apesar de saber que ele não fumava, assim como o sentia a vaguear à deriva pelo jardim, apesar de saber que estava encostado à vedação e olhava hipnotizado os pontinhos vermelhos e verdes do horizonte.
“ E se ela não é como eu me lembro? E se ela me rejeita?”

Já perdera a conta das vezes que esta conversa se instalara entre nós. E sobretudo, eu sabia o que era esse inútil trapo que é o passado. Ele injectava-se com falta de memória; eu sofria.
“Procura-a amanhã. Tem que ser”. E desliguei.


No dia seguinte, quando acordou, atirou com os lençóis para trás, espreguiçou-se longamente deixando o corpo provar todo o seu entusiasmo. O sol fraco escapava pela fresta da janela de madeira iluminando-lhe as pupilas sem o magoar. Ao pequeno-almoço, ligou-me de novo “Vou procurá-la agora. Á livraria onde ela trabalhava”. Parecia-me tão feliz, que quando desliguei a chamada não pude evitar sentir um golpe profundo de dentro para fora. As minhas entranhas esfaqueavam-me e o resultado era um sangue coagulado ao contrário.

Enquanto o imaginava a escolher a roupa e a acalmar as borboletas que lhe comiam o estômago, decidi ir dar um passeio de bicicleta, como fazia quando era pequena. Meia hora depois, com os braços abertos e o vento a insuflar a minha camisola tinha revivido a história dele – outra vez. Aquela rapariga perfeita, que por entre tantas que ele tinha conhecido, permanecera imaculável nos seus quinze anos. Ele contara-me as horas que passaram no sótão da casa dela, isolados do mundo pelos telhados baixos e a luz castanha filtrada pelas clarabóias mal lavadas. Nesse tempo, o estômago dele estava sempre revirado, acordava a meio da noite estupidamente feliz e apavorado ao mesmo tempo. Lembra-se, disse-me ele, de ter pena de morrer. Ás vezes ficavam deitados no sótão, estendidos em tapetes velhos. Ele via-a por entre as bolhas de sabão enquanto lá fora chovia e o perfume inundava o ar. Falavam das perguntas difíceis e desse futuro que tardava a esperar por eles.
Por isso ela cheirava a chuva e o futuro cheirava a ela.

Com as botas enlameadas e as bochechas vermelhas do calor, desci da bicicleta e sentei-me à beira do ribeiro. Ameaçava chover e pensei que talvez desta vez ele estivesse com ela, como nos filmes.
Mas nem cinco minutos passados, e ouvi passos atrás de mim. Vinha ao meu encontro, ao sítio onde nos encontrávamos sempre. Sentou-se calmo e disse-me o mesmo de sempre “Ela já não se lembra de mim”.

Abracei-o e depois ficamos os dois a ver a água fluir enquanto as nuvens se encavalitavam e tornavam o ar irrespirável.
Ele precisava de sentir o estômago ás voltas de vez em quando, para sentir que estava vivo. Eu precisava de o ver fazer isso, para saber que não valia a pena.
   

Monday, September 05, 2011

Saudades dos Homens

Que vida tão complicada. Oito horas de sono, oito horas de trabalho inflexível, oito horas esquartejadas entre o aspirar meticuloso da casa, o engomar das camisas com as dobras impecáveis e o lavar da roupa. Quente e fria. Branca e preta. Sintética e de Lã.
Ao fim do dia, apenas aquela refeição equilibrada, com verduras da mercearia, carne do talho a quem se garantiu a qualidade do material e fruta na porção exacta de açúcar.
Que complicação, tento dizer-te da mesa onde estou sentada a beber o meu café. O mundo não acaba se juntares a roupa preta com a roupa branca. Alias, na verdade é exactamente o mesmo.
Já experimentaste tirar uma folga para te apaixonares? Ela diz que sim, que se apaixona quando ao fim do dia ainda tem meia hora para gastar.

Levanto-me da mesa e apercebo-me que tenho saudades dos homens. 

Thursday, March 03, 2011

CLOSED - Blog (temporariamente) Fechado

Tuesday, March 01, 2011

Antagonismo

Se é verdade que a vida é o que

queremos dela.
Se é verdade que o sal é o acucar que
desejamos.


Entao onde esta esse espelho que persigo
ate quando sonho; ate quando bebo um café
à esplanada?
Onde esta esse quadro surrealista, onde me desejas
na intercção geometrica da minha boca com as tuas mãos?
Esse borrão de cor, um vermelho de paixão violento que
até envergonha as aguarelas?
Onde esta a desordem do mundo e a claridade
dum sexo sem sentimentos?
A pele so como pele.
A carne como carne que
é.

Invarialmente, a resposta surge no impressionismo
do meu Amor.
Porque ha demasiado vento no meu olhar.
E as minhas mãos perdem-se na tua voz,
Antes de ouvirem o que o teu corpo tem para
me gritar.

Tuesday, February 22, 2011

Some Kind of Monster

Am I some kind of monster?



Ensinam-nos na escola que o Monstro é aquele ser devasso e horrendo. Acorrentador de consciencias. Que o Monstro é o vilão e que a maldade lhe nasceu como nos nasce o Amor.
Mas a minha consciencia estava acorrentada à Liberdade.


Am I some kind of monster?


E eu sempre lutei contra esses acorrentadores de monstros. Pobres almas fechadas numa aparencia pestilenta. Presos naquela necessidade ancestral de que é preciso um vilao. Porque sem viloes nao há herois.


Am I some kind of monster?


E Amo os Monstros como nao amo as pessoas. Ha quem prefira os animais. Outros preferem as pedras. Eu sempre perdi o coracão por Monstros. Eles sempre deram o coracão por mim, Eu sempre fui a razão pela qual eles matam.


Am I some kind of monster?


Mas de quando em vez, o vento sopra. E eu vou com o vento, acorrentada à minha Liberdade. E há um monstro que chora.
Na suavidade da noite, o machado perde a fogosidade da Morte.


Am I a person? Or just some kind of monster?



Tuesday, February 15, 2011

Nao ha vida sem Amor.


“Ele é ele. E ela é ela.”



Para que fazer do amor uma invencão dos tempos modernos? E de nós maquinas compreensivas capazes de perdoar?


Hoje o amor serve-se com doses de adrenalina curtas. Quando acaba, despegamos uma mão de um corpo e ligamos a outro. Quando acaba. A pessoa que estava na nossa cama, passa a estar na outra, ali a outra do lado. E nos levantamo-nos, compreendemos que o amor acabou e lavamos os dentes.


E em cima da mesa estao dois comprimidos: um para o amor, outro para a vida. E cheios de nós, tomamos a vida para poder amar.


Quem me dera dizer-te que nao sou um esquilo como tu. Que o teu amor é tao falso como a minha pele que pedi emprestada para poder espreitar o teu mundo.


Se ao menos compreendesses. Abro-te a boca devagar, sem que percebas e deposito-te a vida no estomago, porque nao quero que sofras.


Mas tu nao és hipocrita como eu. E porque me amas, vomitas para cima de mim.
Nao ha Vida sem Amor.

Wednesday, February 02, 2011

O Cavaleiro da Dinamarca

Era alto forte e loiro
tão loiro que envergonhava o sol
no seu sorriso sentia-se a tristeza
nos seus olhos lia-se a alma.


(lia-se a alma ou o coração?
o coração batia na alma,
alma grande que cabia no coração!)


estendeu-me a mão que eu agarrei
admitindo o medo de fracassar
e ele ajudou-me silenciosamente
não deixando apenas, a solidão ganhar...


Sabia que ele tinha vindo de longe
sabia-o porque ele me viu...
quem está perto de mim não me vê.
E eu via-o porque ele estava longe
e sabia que ele se ia embora
se não, ficava perto...


Nunca soube o seu nome
e apesar de não ter uma espada
salvou-me, vindo do nada
o Cavaleiro da Dinamarca.


(Alice - 2000)

Monday, January 31, 2011

O Fim da Monogamia

Que pessoa desarrumada eu sou! Sempre a minha roupa espalhada pelo chão. Sempre a pôr as coisas erradas nas gavetas erradas.
E tu a dizeres que o casamento se deve guardar como deve ser. Que se deve arrumar todos os dias, dobrar decentemente como uma camisola. Que perfuma o ar, como te perfuma a ti. Um ser limpo de sentimentos tratados.
Mas eu sempre gostei da minha roupa, nao da forma como a trato. E, sejamos sinceros: nao preciso dela limpa, preferi sempre o perfume da noite e os últimos restos de vida que por ali ficam.

Por isso, se queres construir uma relação, nao lhe chames Amor.
Porque Amor nao se cuida, nem se trata nem se retira da monotonia dum sexo interminável a dois.
Aonde tu guardas o Amor, eu guardo o Sexo de Amizade. Onde guardas a Amizade, eu nao guardo nada. Onde tu nao pões nada, ponho eu a Amizade. Esses eternos espaços vazios da casa, preechidos pelas frestas de luz dancante.

Temos um problema de arrumação, temos efectivamente um problema de etiquetagem de gavetas.
E eu sou quem mais sofro, quando chego a casa a horas de jantar e tropeco nas cuecas que deixei no chão da cozinha. Que merda, penso tantas vezes, nao era aqui que eu queria viver.
Que bom seria chegar a casa e ter a loiça limpa e entrar num duche, onde as toalhas cheiram a maresia – o perfume que compraste no supermercado do bairro.
Que bom seria, chegar a casa e ter-te na cama, saber que ali se deita um abraço para os meus ombros mutilados com a permanente tatuagem da morte.
Mas sexo algum se mantém por companhia. E por isso, com os pés presos nas peças de roupa espalhadas e as mãos gordurosas da banca da cozinha que nunca limpo, lembro-me do tempo que gastas a arrumar pateticamente as camisolas nas diferentes prateleiras.
Um dia, vais-te ver a arranjar solucões novas, para acender a chama que se foi esfriando e encontraras mais uma pessoa na tua cama. Esse menage a trois excitante que te lembra que a vida ainda vale a pena – e ao menos podes continuar a planear férias e a fumar à janela com aquela que escolheste para a vida toda.

Porque afinal, o Amor nao dura para sempre.
Mas isso nao é Amor.

Talvez devesses ser monogâmico a espacos desconexos. Mas isso era ter a casa toda desarrumada e tu nao consegues viver sozinho.

Eu prefiro Amar.

Monday, January 24, 2011

A menina dos Fósforos

A porta fechou-se contigo e levou a luz atrás. Como se as lâmpadas tivessem sido sugadas pelo saco que se arrastava na tua mão. E foi a ultima coisa que vi, nesse breve clarão de luminosidade, antes da porta ter assente no trinco e o som ter ecoado na caverna do meu corpo.


 Era Inverno, em Svalbard. E na minha pequena casa enterrada em neve, a luz do sol chegava durante uns magros minutos que batiam no relógio de cada dia. Mas os meus olhos já estavam tão habituados à escuridão que aquela pequena franja de radiação difusa que clareava o ar por entre a camada espessa de nuvens, me fazia arder as pálpebras. Na maioria dos dias, nem sequer acertava com essa hora de luz, a dormir enroscada nas mantas quentes e na beira da lareira.

Deixaste-me uma caixa de fósforos em cima da mesa. E eu que nem precisava deles.
Um dia, enterrada na escuridão do mundo, resolvi acender um e vê-lo prontamente morrer-me nas mãos.
Passei a usá-los para desenhar amores. Amores que minguavam e se extinguiam até se misturarem com a escuridão do presente e a humidade do musgo que me ia crescendo no coração.

E foi quando finalmente a caixa acabou e o Inverno descongelou as árvores e as plantas, que eu saí da manta velha e carcomida, despeguei as minhas pálpebras coladas e que me afundei serenamente no lago que banhava as traseiras da minha casa.

Porque nunca tu exististe.
Foi só um fósforo esquecido no chão que criou uma ilusão a que eu chamava de vida.  

Wednesday, January 12, 2011

Medo

Não pares o meu medo
Ou as minhas lágrimas
Ou a minha estúpida forma de nunca
viver o dia-a-dia para não
ir emagrecendo
nos sonhos.

Não me digas que tenho de me
habituar.
A resignação é o chá das cinco
dos frustrados.

E eu nunca quis morrer.

Por isso não estrangules o meu amor
Com o entendimento
da tua ausência.

Porque Amor é nunca compreender o vazio
Do teu lugar.
E nunca morrer de letargia controlada:
Um qualquer comprimido que inventaram
para fazer do amor uma relação.


Inspirado em Jacques Brel e nas suas considerações sobre o medo. 

Saturday, January 01, 2011

Retrospectiva

“Não penses demais – disse-me ele tanta vez”


Numero dois da rua. Estava à porta do prédio, em Hotel de Ville. Paris.
Íamos de mãos dadas pela rua, o tempo frio arrefecia os corações mais fracos e a neve espreitava por entre as nuvens, pronta a descer sobre nós. Quando de repente paramos à frente daquele prédio antigo, de arquitectura parisiense onde há algum tempo atrás eu passara uma noite fugaz.

Nessa noite, bebera demais naquele restaurante ao pé do Sena e viera ligeiramente entontecida para a frente da Câmara Municipal de Paris fumar um cigarro e estender a língua em beijos compridos. O tempo estava estranhamente quente, como eu era estranhamente ingénua. Entramos naquela casa, mesmo ali ao lado e antes de me afundar na cama de penas e nas almofadas de veludo da cama dele, lembro-me que espreitei pela janela e vi um dos campanários da Notre Damme. Nessa altura não me apercebi que era a Notre Damme que me estava a ver a mim, do seu campanário.
E não demorou muito a que esse meu amor eterno me expulsasse de sua vida. Na verdade, foi nessa mesma noite. Depois de fazermos amor e de me enterrar naquele veludo vermelho, que ele me puxou para fora e de rompante abriu a porta.

Silêncio. Abri as mãos e senti a minha pele gelada na Primavera de Paris. O vão da escada estava escuro e aos apalpões atingi o interruptor e quase por magnetismo acendi-o. Á minha frente estava uma rapariga nua e desgrenhada, parada no meio da escada a olhar para mim com uns grandes olhos fundos.
Com o horror a percorrer a minha consciência, percebi que era Eu. Reflectida no espelho do elevador. E quando comecei a agarrar nas minhas roupas que ele tinha atirado para o chão, ouvi passos na escada. Num ímpeto de sobrevivência, agarrei nos meus trapos e escondi-me dentro do elevador. E foi então que via outra rapariga chegar e tocar à porta. E ele abriu, como se estivesse surpreendido.
“Viu-a pela janela” pensei. E talvez já nada pudesse piorar. Mas podia.

Vesti-me e sai pela mesma porta onde a rapariga tinha entrado e dei-me conta que a madrugada ainda não tinha florescido naquela noite e os ossos enregelaram-se com o orvalho. Esquecera o casaco lá naquele casa e o metro já estava fechado.
Á noite, por Paris estrangeiro, fui tendo frio nas ruas e nas bordas dos prédios. Fui tendo frio nas frestas das praças e à frente da Notre Damme, onde humildemente me prostrei. Fui tendo frio em mim mesma.
E de manhã, acordei ao pé do Sena, enroscada num banco ao pé dum sem abrigo qualquer. Agora também eu era um qualquer.

Agora de mãos dadas com o meu amor à porta daquele prédio, lembrei-me que continuava a ser uma qualquer. Continuamos parados à porta do prédio, e tudo aquilo me era tão familiar que pensei que podia vomitar. Ele sentiu o meu enjoo e longe de saber o que se passava, sorriu-me, achando que eu estava grávida.

Mas o meu pensamento parou ali à porta e já dali não saiu. Que ingénua que eu era.
E de repente percebi que a ingenuidade era uma doença que me estava grudada na pele, pior que a gravidez.
Porque eu seria sempre incapaz de entender o futuro. A nudez em Paris, podia estar à minha espera, em cada esquina.

Por isso quando chegamos ao metro, despedi-me dele para sempre.

Popular Posts