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Sunday, October 07, 2012

Estar apaixonado é ver o Sol nascer dos dois lados


« Estar apaixonado é ver o Sol nascer dos dois lados »
 provérbio finlandês

Saiu de casa sem vontade, atravessou a rua e tirou a chave para desbloquear a bicicleta estacionada ali durante toda a noite. Os pedais moveram-se acusando um som agudo e preguiçoso e debaixo dum nevoeiro espesso ele desapareceu ao fundo da rua, engolido pela madrugada fantasma.
Era normal haver pouco sol, especialmente durante o Inverno em que a neve cobria timidamente os beirais das casas e aquele nevoeiro sobrevoava toda a cidade como um vigilante. Mas nunca isso o impedia de se levantar e  viver a sua vida rotineira, tão bem quanto sabia.
Naquele dia porém, algo mudou. Em cima da sua secretaria estava o correio do dia. Quando se preparava para abrir as cartas, ouviu pela primeira vez a voz dela. Uma gargalhada tímida e límpida ecoou na sala. Levantou-se e foi até à porta, espreitou e viu uma mulher de cabelos negros e olhos de amêndoa. “É bonita”, pensou imediatamente. Mas encostou a porta e voltou a sentar-se na sua secretrária de aprendiz. O coração batia sem que soubesse porquê. Precisava de férias, pensou. Ao almoço no entanto, apresentaram-lhe Maria, a argentina que ficaria a trabalhar com eles. Ele acenou, num cumprimento formal e retraído: não só ela era linda como era mais velha.

Bert tinha vinte e três anos e acabara de começar. No inicio ficara entusiasmado com a sua independência mas rapidamente tudo aquilo se transformara num fardo que era tão dificil de suportar quanto era de denunciar. A sua namorada mais recente parecia querer ficar com ele para sempre e os preceitos evocavam que começassem a pensar na casa que queriam. E se a queriam tinham que a construir. E para a construir precisavam do dinheiro de Bert e da sua estabilidade.
Ás vezes quando o Sol espreitava, ele ainda gostava de pegar na sua bicicleta e pedalar ao longo do canal, onde não havia ninguém e ai pensava que era bem feliz assim. Mas outras vezes, no escuro do seu quarto, com os olhos fechados julgava ver rasgos momentaneos de cor. Depois adormecia e esquecia tudo no dia seguinte. Havia porém, algo que Bert nunca esquecia, pois nascera com a rara doença de não ter olfacto. A sua mãe cansou-se durante a infância de lhe trazer flores e passa-las pelo seu nariz. Enumerava os nomes e dizia-lhe para fechar os olhos e inspirar com força. Com os anos, Bert como um mau aluno que se remedeia dizia a medo parecer sentir qualquer coisa. Mas era inútil, ele não fazia ideia do que procurava e ninguém lhe conseguia descrever o que era esse cheiro que lhe faltava.
Naquele dia ao almoço, ele imaginou que o olfacto fosse parecido com Maria.

Dias depois quando saia bem tarde do trabalho, Bert viu-a por entre os troncos magros das árvores. Estava já escuro mas os cabelos pretos revoltos denunciavam-na. “Maria?” perguntou ele a medo. A vegetação mexeu-se e ouviu-se um choro grave. Bert tirou as mãos dos bolsos e caminhou em direção das árvores tentando não fazer barulho. Ela estava sentada no chão, em cima da musgo húmido, sem casaco e cobria a cara com as mãos, dobrada sobre os joelhos. Bert baixou-se e pôs-lhe a mão no ombro, ficando imediatamente gelado. “Vamos embora” disse-lhe determinado. Ajudou-a a levantar-se e caminhou até à paragem de autocarro mais próxima com a mão no seu ombro. Nessa noite, ligou à sua namorada e mentiu-lhe pela primeira vez. Depois levou Maria para o seu modesto apartamento, deixou-a tomar um banho quente enquanto preparava um chá forte.
Enrolados em mantas falaram até de manhã. Lá fora nevava e Maria falava-lhe do homem que a deixara por ela ter saído da Argentina. Bert ouvia deslumbrado a paixão que lhe escorria na pele. A maneira como ela falava, os seus gestos e o calor dos lábios tudo tinha movimento e intenção. Os seus olhos enchiam a casa de expressão e era viciante, como um novo sentido que se descobre.
Quando o sol ia alto Maria adormeceu. A sua face estava rosada da exaltação e queimada do frio. Ele não tinha sono, nem dormir àquela hora lhe fazia sentido, mas como num pequeno sonho, também ele se deitou no soalho enrolado naquelas mantas e fechou os olhos. De tarde Maria acordou e voltou para o seu apartamento do outro lado da cidade.E quando finalmente o cansaço se começava a apoderar dele, ouviu o toque da porta. Era a sua namorada e a sua antiga vida.
Nas semanas seguintes Bert conheceu o cansaço extremo de uma vida dupla. Sempre que podia estava com Maria, passeavam e conversavam, no pouco resto de tempo ele fingia que nada se passava com a sua namorada. Ás vezes à noite pensava para si de olhos fechados “tenho de parar com isto” mas depois adormecia e esquecia tudo no dia seguinte. E quanto mais Maria dependia dele, mais ele gostava dela.  
Falavam frequentemente do Amor. Bert queria entender e sentia que ironicamente, algo lhe faltava. “Estar apaixonado é como andar aos solavancos numa montanha russa. Sentir o estômago perto dos pés e o coração no topo do mundo. Saberes que vais cair na vertigem mais profunda e abrires os braços ao vento. E aquele saber profundo, semi-consciente de que vale a pena estar vivo” disse ela. Ele cruzava os braços e e olhava de forma franzida o horizonte. Como ele desejava afundar-se naquela loucura, se ao menos ele soubesse como fazê-lo. “Não tens medo de cair dessa montanha?” perguntava-lhe. E ela dizia “Tenho é de medo de nunca chegar a andar”.
Quando o tempo passou, Maria parecia estar restabelecida daquele longínquo dia em que ele a encontrara caída no chão gelado. As memórias do outro homem desvaneciam se lentamente, pela mão implacável do tempo e Bert ganhara um lugar especial na corrida que mais desejara. Até que um dia, sem nada que o pudesse esperar, Maria recebeu uma carta da Argentina. Perturbada ela chamara-o até sua casa e calcava ansiosa o soalho de um lado para o outro. Mal chegou, Bert viu que ela se  escapava de si como areia entre os dedos. Pegou na carta sabendo de antemão o que iria encontrar e os olhos passaram por cima das letras dum espanhol que em tempos aprendera.
Inspirou com força de olhos fechados e pegou-lhe na mão. “Achas que devo voltar?” perguntou ela. “Sim, a corrida ainda não acabou para ti”. E assim que o sangue lhe começou a correr nas veias, abriu os olhos e espantado sentiu-lhe o cheiro.  

Sunday, August 26, 2012

Se um dia escreverem a minha biografia quero que a façam por aeroportos


Viajar sempre foi um sonho tão desejado que possivelmente o Mundo o repelia de mim, como para me obrigar a ver um pouco mais do espectáculo antes de ir embora.
Chegaria o dia, diziam-me, em que entrar no avião seria tão banal como apanhar o comboio, ligar os phones e adormecer um pouco para acordar rapidamente noutro sítio.

Como amar uma pessoa e chegar um dia a casa e perceber que a música de fundo é só uma forma de o tempo andar mais depressa, até uma estação que não foi ainda desenhada.
E como se ao amar, já estivesse implícito que não se ama. Como se o começo contivesse o fim dividido infinitamente pelas vezes em que o pensamos.

Tremem-me as mãos manchadas à porta do aeroporto. Que é porque amo demais as coisas que elas se desgastam como fósforos. 
Que é porque não as sei beber por goles que as paixões não duram.
Não as estico. Não as permaneço.

Mas isso é como entrar no aeroporto e por os phones, sentar-me na cadeira e esperar pela chamada da voz rouca. É permanecer semi-indiferente à realidade das cosias que chamam por mim. Se o amor devia ser assim, então mais vale que não comece. Que acabe antes de ser morto às fatias.

Saturday, August 25, 2012

O Mar


Ao andar pelas ruas pequenas e encarquilhadas tudo voltou à minha lembrança. Aquelas noites de Junho quentes e cheirosas, como se o calor cheirasse ele proprio a manjericos, os vestidos frescos, os lençois sedosos, o sol a espreitar as persinanas de manhã. Os sonhos que existiam mas sobre os quais não se tinha consciência.
A cidade antiga é branca e caótica como um labirinto. As janelas estão todas abertas, a roupa lavada está estendida nas varandas mas fica seca como farrapos de bandeiras de navios naufragados. Passo por baixo dos vários arcos em busca de uma praça, mas não há ordem nenhuma, a não ser aquela ordem natural de se ir acrescentando paredes sem pensar no futuro da casa.
A minha pele está castanha e brilhante, sequiosa por este calor que lhe nasceu nos nervos, os pés sabem o caminho sobre aquela pedra branca silenciosa até ao mar. A maresia está em cada atomo de vento, irrompe os pensamentos e os passos tornam-se salgados. As minhas mãos tacteiam o vazio que de repennte se torna cheio de espaços. E para lá daquelas paredes brancas, o Mar surge como uma risca de azul borrada de esperança.

Thursday, August 23, 2012

O mito do D.Sebastião


Lembro-me que entre nós pouco ou nada foi bom. Talvez uma tarde em que havia Sol e nós fomos passear ao pé do rio. Ou talvez aquele momento difuso em que tu disseste não sei o quê. Aquilo. Qualquer coisa que até foi bonita mas que se escapa da minha memória.
Lá no fundo, é como se fosses apenas um fumo branco e cheiroso, uma nuvem que promete eternamente um D.Sebastião. O anteceder de um concerto onde o nevoeiro possibilita todas as notas de musica, todos os riffs, todos os solos que estão por inventar.  
Tudo entre nós acabou de forma abrupta e encarceradora, numa guerra feita de sangue seco que coagulou nas únicas linhas de comunicação que poderiamos ter tido mas que nunca soubemos usar. Assim morre o amor, dizem os livros. Dizem as pessoas. Até tu me gritaste isso aos ouvidos, quando me atiraste com a porta no meio de anseiras rancorosas. Afinal o amor tinha mais de amargo do que as horas dolorosas passadas à espera que ele chegasse.
Mas não há nada que o tempo não cure. Ou, mais correctamente, não há nada que o tempo não mude. Porque hoje, lembro-me que entre nós pouco ou nada foi bom. Mas  a verdade é que quando afasto o nevoeiro saudosista que me atiram para os olhos, sei que na verdade nunca houve amor nenhum e as boas memórias nunca tiveram chão para medrar, porque nunca as chegamos sequer a semear. 

Sunday, July 08, 2012

A História do Rato do Campo e do Rato da cidade



Quando o pai lhe pediu para descer até à sala de estar, Sofia deixou o quarto que cheirava a rosas e a túlipas frescas e demorou-se pelos corredores brancos da enorme vivenda onde vivia. O seu vestido amarelo - pálido esvoaçava como uma ave em equilíbrio ao sabor da corrente.
O seu sítio preferido era um canto, junto à entrada de um dos quartos semi-abandonados à espera de visitantes que sempre tardaram em chegar. Dali, ela via a casa caíada de silêncio, mantendo-se numa sombra estratégica que a isolava de tudo.O cheiro das flores vinha do jardim selvagem, embrutecido pela falta de pessoas que foram deixando a vila ao longo dos anos. O pai de Sofia fora um dos que ficara, quando a mulher morrera ele fechara-se atrás das cortinas da casa, como se de si próprio fechasse as janelas. Sofia crescera naquele ambiente nostálgico e doce, em que tudo eram sombras e expectativa.
Quando era pequena, divertia-se a correr pelos pinhais que se estendiam ao longo de um dos lados da enorme casa, o cheiro fresco das pinhas crepitava como uma fogueira e Sofia sentia a liberdade como um tapete vermelho estendido aos seus pés que ela pisava devagar, com medo de sujar.
Mas agora, quase uma mulher, Sofia fartava-se daquela vida arrastada que levava entre a casa branca e a pequena vila, as mulheres rudes que lhe tapavam o vestido ou a mandavam compôr-se quando ela aparecia esfarrapada das suas explorações às falésias, que enclausuravam a vila na sua pequenez.   Por isso, quando naquela tarde de Verão o pai a chamou à sala e lhe disse que chegara a hora de partir para a cidade, Sofia acentiu. Voltou para fazer a sua mala, e equanto olhava pela janela a ponta de mar, não sentia saudade nem excitação.
Nesse Outono, Sofia partiu para a cidade de comboio. A viagem encheu-lhe o coração como uma bolha em equilibrio, antes de rebentar. Os arranha-céus, as estradas compridas e escuras, os altos candeeiros que cuspiam luz indesejada à noite, tudo isso Sofia detestou desde o primeiro momento. Dentro do seu pequeno apartamento incrustrado num prédio de tijolo, com umas minúsculas escadas de salvação nas traseiras, esforçava-se por não ir à janela e não ver toda aquela amálgama de pessoas e barulho.
Odiava intensamente os sinais de trânsito e os carros pretos e vermelhos que chiavam como loucos. Mas o que ela odiava ainda mais eram as pessoas, a forma como falavam alto e se vestiam de forma exótica. O pai dissera-lhe, antes de partir “Tem cuidado Sofia, as pessoas da cidade são perigosas”. E ela via agora esse perigo, a loucura que destilava da sua respiração. Era como se não existessem regras, tudo era permitido dentro daquele grande jogo de luzes.
No fim do Outono, a cidade encheu-se de chuva miuda e o sol baixo deixava nos prédios cinzentos um tom de mel. Farta de estar escondida, Sofia decidiu dar um passeio até ao parque da cidade. Com a gola do caso subida, foi andando por entre as árvores altas como os prédios, as grandes avenidas do jardim estavam cheias de folhas secas amarelecidas pela chuva e faziam do chão um tapete fofo e silencioso. No coração do jardim, um lago enorme recortava a paisagem aos olhos de Sofia. A água calma, balançava ao som de música que vinha da redondeza, dando-lhe vida.  
E ao som dessa música, um rapaz vestido de cores alegres abria os braços, convidava o vento a entrar pelo casaco. Sofia viu-o de costas e aproximou-se sem se aperceber. Mas ele viu-a e sorriu-lhe “Que bela tarde de Outono”. Ela respodeu-lhe que sim, que era uma bela tarde, sem conseguir tirar os ouvidos da rede daquela música eléctrica. “Vives aqui?” perguntou-lhe ele enquanto dava pequenos pontapés nas pedras e olhava o cimo das árvores, perfeitamente enquadrado com o ambiente. “Sim, desde o início do Outono”.  Rapidamente ele lhe estendeu a mão “Sou o Victor, também cheguei há muito pouco tempo, vivo ali do lado Norte”. Ele falava rápido, mexia-se com aquela pressa que Sofia via nas pessoas, e pela primeira vez gostou daquela falta de regras que o fazia ser tão natural como o simples cair das folhas. 
Deram uma volta pelo parque, sempre num passo acelerado, ele dizia-lhe “Mal posso esperar pela neve, isto deve ser ainda mais bonito tudo branco”. A chuva tornara-se mais intensa mas isso não os impediu de subir ao coreto do jardim, tomar um café numa esplanada com chapéus redondos e mesas de vidro transparente como a água. Só quando a noite chegou ele falou em apanhar o autocarro. Sofia pouco sabia dos transportes públicos, apanhava sempre o mesmo metro para ir para a escola que frequentava. Mas Victor dirigiu-se à paragem do autocarro decidido. “Para ondes vais?” perguntou-lhe, enquanto olhava os horários e os destinos. “Para o centro” disse Sofia a medo e como se isso não resolvesse o problema, disse-lhe a morada. “Ah, mas o 22 pára lá, olha aqui”. Um pouco envergonhada, ela seguiu o dedo dele e consultou o placard, onde estava escrito que o autocarro apareceria dentro de três minutos. As luzes piscavam intensamente, uma mulher de cabelo comprido enrolado numa encharpe baloiçava as mãos dentro de um casaco larguíssimo enquanto dois outros jovens conversavam animadamentee fumavam um cigarro. “Amanhã gostava de ir até ao rio, queres vir comigo?” disse Victor, enquanto olhava o fundo da rua para ver se o seu autocarro lá vinha. “Podemos encontrarmo-nos lá depois do almoço”. Foi só o tempo de Sofia dizer que sim, e desaparecer dentro do autocarro que afinal parava mesmo à porta da sua casa.
No dia seguinte Sofia encontrou-se com Victor ao pé do rio. Na verdade, parecia que ele estava sempre um passo adiantado, como se controlasse o tempo. Pedia a sofia para lhe mostrar a cidade, mas Sofia não conhecia a cidade e foi preciso que ele lha mostrasse sempre de olhos no ar, com a cabeça levantada para o infinito. Percorreram as ruas a pé, o frio escapava-se entre as suas respirações, saboreavam os pequenos cafés pelo caminho, os chocolates quentes que bebiam, as pessoas com quem Victor falava, sempre desejoso de tudo o que lhe aparecia pela frente. Foi em menos de uma semana que Sofia sabia estar irremediavelmente apaixonada por ele. Era uma atracção tão mortal quanto a dum poço fundo cheio de segredos.
Victor apresentou-lhe os seus amigos, convidou-a para os jantares em sua casa e Sofia descobriu-se uma pessoa cheia daquela adrenalina. Falava alegremente com as pessoas, respirava as suas experiências, divertia-se naquelas noites intermináveis onde saíam para dançar e cantar até que o corpo estivesse esgotado. Os dias eram preenchidos, as gotas do dia lambidas até estarem secas e cada vez que Sofia sentia estar mais dentro daquela grande festa, mais se sentia apaixonada por Victor. Quanto mais ela alcançava, mais havia para alcançar.
Os dias avançavam sem piedade, não dando hipotese a qualquer hesitação. E um dia, enquanto estavam na casa de Victor para uma festa, Sofia procurava-o por entre uma pequena multidão que fazia petiscos na cozinha e dançava na sala. Como não o encontrando, perguntou ao seu amigo João, que vinha da varanda. “Está lá em cima, no terraço” disse-lhe João com um ar profundo que Sofia não notou. Agradeceu-lhe e subiu as pequenas escadas da varanda, e encontrou Victor deitado no terraço a olhar as estrelas.
E como não resistindo àquele surrealismo, deitou-se com ele e beijou-o como se tentasse sorver as estrelas daquele Universo. Mas antes que conseguissem dizer algo, João apareceu no terraço e chamou Victor. Sofia deixou-se estar sentada com uma ponta de frio enquanto João esperava impacientemente que Victor descesse as escadas à sua frente. Mas antes de se ir embora sacudiu esse frio e voltou a entrar no quente da festa, decidida a não esperar mais pelas expectativas.
Mas nessa semana algo mudou. Combinaram um cinema numa quinta-feira à noite, mas Victor não apareceu. Ao invés disso, Sofia viu o filme com os seus os seus amigos, de quem agora ela também era amiga. Victor tinha ido a outra festa e não poderia vir hoje. Mas o filme soube-lhe a pouco, Sofia olhava a porta do cinema a cada cinco minutos e consultava o seu telemóvel. Tentou ligar-lhe, mas ele não atendia. A seguir ao cinema decidiram ir a um bar beber um copo. Sofia seguiu-os incapaz de se manter quieta, percorrearam as ruas da cidade quase deserta, por entre as luzes incandescentes. Um frio apoderava-se dela, sem que o permitisse a entrar; João falava-lhe e ela respondia animada, lutando para que aquela nostalgia não a consumisse.
Mas era tarde de mais. Sem dar por isso o Inverno tinha chegado enquanto ela estava distraida e na primeira noite em que nevou, Sofia recebeu um telefonema de Victor a avisá-la que se ia embora da cidade. Lá fora estava tudo branco e quis dizer-lhe isso, mas compreendia que Victor estava sempre à frente, até do Inverno. A neve para ele já tinha chegado.
A festa de despedida ficara adiada para depois do Natal, e por isso ela fez a mala para voltar para casa onde o pai a esperava para a ceia. O Inverno ali era rigoroso, mas sem neve. O vento uivava enquanto Sofia sem nada que a ocupasse, olhava pela janela enquanto os dedos tremiam de falta de adrenalina. Cada segundo que passava, Sofia sentia Victor cada vez mais longe, como se ao estar ali, no fim do Mundo, perdesse a capacidade de se desenvolver e de o agarrar.
O tempo estava parado, no relógio de parede da casa e dolorosamente o Natal chegou mas em tudo Sofia sentia a falta. Quando voltou ao seu pequeno apartamento a neve cobria toda a  entrada do prédio e estendia-se pelas ruas. Os carros passavam e as pessoas andavam debaixo de um nevoeiro de neve. Era como se tivessem desligado o som da cidade e tudo acontecesse num filme mudo. Sofia vestiu-se e apanhou o autocarro à porta de casa, trocou para apanhar o metro e chegou antes de todos à festa de Victor. Ele lá estava, exuberante e preenchido como sempre, cheio de planos e vida. Sofia percebeu que não o veria mais e sentiu com um jacto de consciência a falta que ele lhe ia fazer.
A Primavera chegou quando Sofia não conseguia impedir-se de andar pela cidade. Aprendera de cor os caminhos de Victor e os cafés que ele gostava. Aprendera as pessoas com quem falava e os sitios onde se demorava. E sobretudo aprendera aquela azáfama, sem a qual não conseguia viver. Por isso gastava-se nos caminhos da cidade inesgotável, chegava a casa tão cansada que se atirava para a cama e dormia profundamente. A sua obcessão tornou-se tão forte que deixou de sair com os amigos de Victor que conhecera. Nada a deixava mais proxima dele do que os sussurros da cidade ao seu ouvido. À noite deixava-se ficar pelos cafés da cidade, vestia-se de preto e expunha-se debaixo das luzes dos candeeiros, para ver as sombras dos seus passos.
A única pessoa que continuava a ver era João. Lembrava-lhe Victor, um Victor que ela conseguia agarrar e por isso menos entusiasmante. João levava-a pelos mesmos caminhos, mas cultivava um silêncio que lhe era incómodo. Quando o Verão chegou, João visitou-a no seu apartamento. A cama estava por fazer, a roupa amontoava-se há semanas pelo chão, os livros equilibravam-se em cima do lava-loiça e o microondas cheirava a comida ressequida. Sofia convidou-o a entrar com simpatia, ignorando os seus olhos inquisidores. Sentaram-se na sala, com o calor do Verão a entrar pela janela enquanto Sofia punha a música no volume mais alto e abria uma garrafa de vinho escuro como o sangue.
“Vais voltar para casa, agora que o ano acabou?” perguntou João. Sofia encolheu os ombros “Acho que não”. João fez um compasso de espera, como um jogador de xadrez experiente “ Ele não vai voltar, Sofia”. Mas Sofia olhou-o magoada e disse-lhe “Nem ele nem eu vamos voltar”. E enquanto o calor se entranhava no pequeno apartamento caótico, por entre as persinanas corridas, João beijou-a enquanto afastava a roupa em cima da cama e a deitava com uma paixão nostalgica. Fizeram amor enquanto pela janela entrava, vindo das outras janelas o Come Here, de Kath Bloom. No fim da tarde, João vestiu o seu casaco de cabedal, saltou despreocupado por cima dos CD’s que estavam no chão e deixou Sofia a dormir.
Mas no dia seguinte Sofia apanhou o comboio de volta para a sua vila sem dizer nada a João. O pai recebeu-a com aquela indiferença passiva de sempre e Sofia achou-se num sossego que a magoava e que ela sadicamente procurava. O resto do Verão passou-se entre os infindáveis pores-do-sol, as noites do baloiço com a brisa da noite sem palavras e um cansaço de não fazer nada, que era cada vez mais forte. Num desses dias, João bateu à porta. Amolecidos por aquela vida opaca, ninguém apareceu para abrir e Sofia desceu as escadas e viu João nas suas calças de ganga claras, calmamente à espera no alpendre. Os seus olhos verdes cor-de-limão brilhavam do sol e estendeu-lhe os braços num longo re-encontro.
Sofia mostrou-lhe a casa, o seu quarto branco com a longa cama de casal que tinha sido dos seus pais, a vista para o Mar da janela. Depois sairam para o jardim. O dia estava quente, insuportavelmente quente e sentaram-se num banco do jardim. Estavam sós como se o Mundo tivesse fugido deles. Aquele silêncio tão característico  instalou-se como um anjo de pedra. Sofia pôs-se de pé no banco e sentou-se na dobra mais alta, vendo a cara de João de cima. Ele olhou para ela, com dificuldade franzindo os olhos frágeis e levantou-se também. Deu uns passos no jardim e abriu a torneira da mangueira para por as mãos debaixo de água. “Cuidado, a água está muito quente” disse Sofia. O primeiro jacto de água que saiu estava de facto a ferver, mas em menos de cinco segundos a água gelada da torneira brotou-lhe nas mãos. João pegou na mangueira e atirou-a num relâmpago a Sofia que gritou com a respiração parada. A água gelada escorria-lhe pelas costas enquanto João ria como um louco. Completamente encharcada, o coração de Sofia pulsava de adrenalina enquanto roubava a mangueira de João e o fazia provar daquela delícia. E quando o êxtase se apoderou deles, rindo como delinquentes no jardim João disse-lhe “Ele voltou Sofia”.
Sabia de cor os autocarros, sabia as ligações do metro. Uma senhora com duas crianças parou para lhe perguntar onde ficava o supermercado mais próximo. Sofia deu-lhe a morada e as indicações, sem pestanejar. A vida da cidade corria em câmara lenta, e ela podia apreciar cada detalhe devagar. Apanhou a publicidade à porta do prédio, fez uma refeição rápida que comeu em cima da cama e saiu para ir comprar cigarros. Havia três anos que morava ali, e não pensava ir embora. Adorava a luz do sol reflectido nos vidros dos prédios e a música que vinha das casas. Havia sempre uma guitarra solitária na rua ou uma criança que corria atrás da bola. Os cães espreitavam pelas cortinas quando chovia e a água caia pelos beirais. Com os cigarros pediu também o jornal do dia, ao dono da tabacaria. Em vez de voltar para casa deu a volta ao bairro, e para aproveitar o sol sentou-se num banco dum pequeno jardim a ler o jornal. Não tardou muito a que uma qualquer música inundasse o ambiente, Sofia levantou os olhos para ver de que janela vinha e viu uma rapariga pálida encolhida por detrás dos vidros. Lembrando-se de si própria acenou-lhe. A rapariga correu as cortinas, mas Sofia viu-a a espreitar. Antes de ir embora para casa, Sofia deixou-lhe na caixa do correio um roteiro da cidade, com os melhores sítios para se estar num dia de sol.Nessa noite, como em tantas outras foi até ao rio depois de ter passado por vários bares. As noites eram sempre animadas e Sofia conhecia metade das pessoas daquela zona. Ali se tinha apaixonado vezes sem conta, paixões tão rápidas como fósforos que se desfaziam nas suas mãos. A última era um estudante de cinema mais novo do que ela cinco anos que se mudara para a cidade.No entanto, quando chegou ao Rio, chegou sozinha. E como acontecia em muitas daquelas noites, também João lá estava. A camisa impecável baloiçava com a brisa da noite.
“Onde está a tua namorada?” perguntou-lhe Sofia. “Em casa, a dormir”, respondeu João debruçado no paredão sentindo o cheiro forte a iodo. “Devias estar com ela, sabes”, disse Sofia como dizia tantas vezes. Mas João parecia ter um desapego natural, como se aquele anjo de pedra andasse com ele e nunca o largasse. “Não estou apaixonado” foi a sua resposta honesta. “Mas continuo à espera que isso aconteça, é possível”.E Sofia sabia bem o que era a vida sem paixão. Como muitas vezes acontecia aproximou-se dele e beijaram-se como naquela tarde em que a música entrava sem pedir licença e os virava do avesso.  Passaram a noite juntos naquela mesma cama de Sofia, com a janela aberta sem vergonha da sua excentricidade. De manhã João saiu com a vida presa nas mãos e um fio gelado a escorrer-lhe pelas costas.
E um dia Sofia abriu a caixa de correio e viu uma carta de Victor pousada contra o metal frio. Era um convite de casamento. Sofia abriu-o e viu que a data do casamento seria dali a dois meses, por baixo duma fotografia de Victor e da sua noiva, enfiada numa saia-casaco branco enquanto ele sorria flacidamente apertado pela gravata. O casamento seria no campo, para onde se queriam mudar.

Thursday, January 05, 2012

To be or not to be.

A mãe pos-lhe a mão na cabeça, tocando suavemente os cabelos loiros finos da criança esguia. Era um ritual do qual muitas vezes mais tarde ele se lembraria. A mãe olhou-o e disse-lhe “Um dia vais tocar piano muito bem”. Depois deixava-o ir brincar o dia inteiro pelo areal e pelos bosques cheiros de amoras silvestres. Ele saia de casa de manhã e debaixo da brisa fresca percorria a praia com os seus amigos, caçavam carangueijos e faziam casas nas grutas impregnadas de algas.
Só à noite, depois do banho profundo, se juntava à mãe na grande sala que cheirava a maçãs. Ao pé da janela, o piano espreitava-o. Um ano antes, por curiosidade tinha passado as mãos pelas teclas e ficara deslumbrado com a textura e o som do instrumento. Logo ali, ficara amigo do piano. Mas era pequeno demais para permanecer sentado mais do que cinco minutos, por isso limitava-se a ir tocando nas teclas, dar-se ao prazer de sentir aquela textura e ouvir a mãe dizer-lhe que um dia o tocaria a sério.   

A paixão dele pelo piano, apaixonou-me a mim. Dois dias depois de o conhecer, deitados na cama, ele confessou-me que sempre tinha querido ser pianista. Quando lhe perguntei porque não era, ele suspirou longamente e puxou a roupa para lhe tapar o corpo nú.
“Não é fácil, nunca cheguei a ter aulas quando era criança e agora vai sendo cada vez mais tarde”. Achei aquela resposta estranha e ao mesmo tempo irremediavelmente atraente, na forma como perpetuava um sonho que pretendia matar pelas próprias mãos.
E esse sonho, valia-lhe uma vida dura. Passava pelos sítios sem os adorar, arranjava empregos que o acidificavam por nunca o preencherem e tinha um natural desapontamento para tudo, especialmente pelas pessoas.
Um dia encontrei-me com ele no seu pequeno apartmento. Perto da janela, o piano permanecia intocável e meio-escondido pela luz do entardecer. Ele sentiu-se desprotegido e levou-me para o quarto; essa foi a primeira vez na vida que senti ciúmes.
Como quase tudo na sua vida, também o nosso amor teve um fim quase imediato. Ele não sabia estar comigo e eu não sabia estar com um amor que já não era. Da última vez que gritamos, sai a correr com a certeza que era a última vez que via o piano. Ele, ligou-me mais tarde e uns dias depois, sem qualquer réstia de paixão para pôr em cima da mesa, tomamos um café.
Eu, ainda assim, eu conhecia-o bem o suficiente para saber que a vida dele continuava a mesma miséria de sempre. Com os olhos inchados das insónias, ele olhava para mim à espera de um sonho qualquer, pedindo-me uma lanterna para lhe dizer qual era a direcção do túnel. Disse-lhe para dormir. Disse-lhe para procurar ajuda.
“És a minha única ajuda” disse-me ele. Não o levei a sério, até porque sabia que quando não dormia o fatalismo extremo se apoderava dele. “Que queres fazer?” perguntei-lhe.
E ele começou o seu discurso mais uma vez. O discurso que eu tinha ouvido centenas de vezes durante o curto espaço de tempo que estivera mergulhada no seu coração.
“Já consegui juntar mais algum dinheiro. Vou finalmente ter aulas para aprender a tocar”. Não me mexi um milimetro, consegui nem sequer pestanejar. Depois de um longo silêncio em que tentei que ele percebesse como era repetitivo, sem no entanto ser bem sucedida, levantei-me e fui-me embra.
No dia seguinte ele voltou a procurar-me. A sua figura andrajosa puxava-me a manga da camisa como um miudo e deixei-o entrar na minha casa, ciente de que não tinha um piano para o acalmar.  “Senti saudades” disse-me. Eu continuei sem responder, algo surpreendida. “Porque não falas comigo? Desde ontem que não falas comigo.”
Ponderei durante alguns segundos mas depois disse-lhe que já não aguentava mais aquele discurso repetitivo dele, sobre um sonho que não planeava cumprir. “Para quê?” disse-lhe. “Aprende de uma vez a tocar piano ou então esquece isso de vez. Tu só gostas da ideia de ser pianista.”
Tive a sensação que mesmo que o piano ali estivesse ele teria vergonha de lhe passar as mãos pelas teclas. Não voltei a vê-lo.

Hoje, um ano e sete meses depois recebi uma carta sua.
“Espero que não te importes que te escreva mais uma vez a falar dum assunto repetitivo. Mas este assunto sou eu, não existe mais nada para além disso.
Queria dizer-te que escolhi esquecer a ideia de ser pianista, porque sei (sempre soube) que nunca seria. Sou agora mais honesto para mim próprio e não me alimento de sonhos ridiculos – como tu lhe chamarias”.
Não sou ainda assim mais feliz. Vendi o piano, e deixei de ter a sua companhia à noite, deixei de poder sentir a textura das teclas. Ainda assim não sou mais feliz, tal como não era dantes.“
A carta terminava assim. E ao lado vinha um papel oficial, avisando-me que ele falecera. Eram demasiado covardes para escreverem que ele se tinha suicidado.
E afinal, era a ideia de ser pianista que lhe salvava a vida. 

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