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Monday, January 31, 2011

O Fim da Monogamia

Que pessoa desarrumada eu sou! Sempre a minha roupa espalhada pelo chão. Sempre a pôr as coisas erradas nas gavetas erradas.
E tu a dizeres que o casamento se deve guardar como deve ser. Que se deve arrumar todos os dias, dobrar decentemente como uma camisola. Que perfuma o ar, como te perfuma a ti. Um ser limpo de sentimentos tratados.
Mas eu sempre gostei da minha roupa, nao da forma como a trato. E, sejamos sinceros: nao preciso dela limpa, preferi sempre o perfume da noite e os últimos restos de vida que por ali ficam.

Por isso, se queres construir uma relação, nao lhe chames Amor.
Porque Amor nao se cuida, nem se trata nem se retira da monotonia dum sexo interminável a dois.
Aonde tu guardas o Amor, eu guardo o Sexo de Amizade. Onde guardas a Amizade, eu nao guardo nada. Onde tu nao pões nada, ponho eu a Amizade. Esses eternos espaços vazios da casa, preechidos pelas frestas de luz dancante.

Temos um problema de arrumação, temos efectivamente um problema de etiquetagem de gavetas.
E eu sou quem mais sofro, quando chego a casa a horas de jantar e tropeco nas cuecas que deixei no chão da cozinha. Que merda, penso tantas vezes, nao era aqui que eu queria viver.
Que bom seria chegar a casa e ter a loiça limpa e entrar num duche, onde as toalhas cheiram a maresia – o perfume que compraste no supermercado do bairro.
Que bom seria, chegar a casa e ter-te na cama, saber que ali se deita um abraço para os meus ombros mutilados com a permanente tatuagem da morte.
Mas sexo algum se mantém por companhia. E por isso, com os pés presos nas peças de roupa espalhadas e as mãos gordurosas da banca da cozinha que nunca limpo, lembro-me do tempo que gastas a arrumar pateticamente as camisolas nas diferentes prateleiras.
Um dia, vais-te ver a arranjar solucões novas, para acender a chama que se foi esfriando e encontraras mais uma pessoa na tua cama. Esse menage a trois excitante que te lembra que a vida ainda vale a pena – e ao menos podes continuar a planear férias e a fumar à janela com aquela que escolheste para a vida toda.

Porque afinal, o Amor nao dura para sempre.
Mas isso nao é Amor.

Talvez devesses ser monogâmico a espacos desconexos. Mas isso era ter a casa toda desarrumada e tu nao consegues viver sozinho.

Eu prefiro Amar.

Monday, January 24, 2011

A menina dos Fósforos

A porta fechou-se contigo e levou a luz atrás. Como se as lâmpadas tivessem sido sugadas pelo saco que se arrastava na tua mão. E foi a ultima coisa que vi, nesse breve clarão de luminosidade, antes da porta ter assente no trinco e o som ter ecoado na caverna do meu corpo.


 Era Inverno, em Svalbard. E na minha pequena casa enterrada em neve, a luz do sol chegava durante uns magros minutos que batiam no relógio de cada dia. Mas os meus olhos já estavam tão habituados à escuridão que aquela pequena franja de radiação difusa que clareava o ar por entre a camada espessa de nuvens, me fazia arder as pálpebras. Na maioria dos dias, nem sequer acertava com essa hora de luz, a dormir enroscada nas mantas quentes e na beira da lareira.

Deixaste-me uma caixa de fósforos em cima da mesa. E eu que nem precisava deles.
Um dia, enterrada na escuridão do mundo, resolvi acender um e vê-lo prontamente morrer-me nas mãos.
Passei a usá-los para desenhar amores. Amores que minguavam e se extinguiam até se misturarem com a escuridão do presente e a humidade do musgo que me ia crescendo no coração.

E foi quando finalmente a caixa acabou e o Inverno descongelou as árvores e as plantas, que eu saí da manta velha e carcomida, despeguei as minhas pálpebras coladas e que me afundei serenamente no lago que banhava as traseiras da minha casa.

Porque nunca tu exististe.
Foi só um fósforo esquecido no chão que criou uma ilusão a que eu chamava de vida.  

Wednesday, January 12, 2011

Medo

Não pares o meu medo
Ou as minhas lágrimas
Ou a minha estúpida forma de nunca
viver o dia-a-dia para não
ir emagrecendo
nos sonhos.

Não me digas que tenho de me
habituar.
A resignação é o chá das cinco
dos frustrados.

E eu nunca quis morrer.

Por isso não estrangules o meu amor
Com o entendimento
da tua ausência.

Porque Amor é nunca compreender o vazio
Do teu lugar.
E nunca morrer de letargia controlada:
Um qualquer comprimido que inventaram
para fazer do amor uma relação.


Inspirado em Jacques Brel e nas suas considerações sobre o medo. 

Saturday, January 01, 2011

Retrospectiva

“Não penses demais – disse-me ele tanta vez”


Numero dois da rua. Estava à porta do prédio, em Hotel de Ville. Paris.
Íamos de mãos dadas pela rua, o tempo frio arrefecia os corações mais fracos e a neve espreitava por entre as nuvens, pronta a descer sobre nós. Quando de repente paramos à frente daquele prédio antigo, de arquitectura parisiense onde há algum tempo atrás eu passara uma noite fugaz.

Nessa noite, bebera demais naquele restaurante ao pé do Sena e viera ligeiramente entontecida para a frente da Câmara Municipal de Paris fumar um cigarro e estender a língua em beijos compridos. O tempo estava estranhamente quente, como eu era estranhamente ingénua. Entramos naquela casa, mesmo ali ao lado e antes de me afundar na cama de penas e nas almofadas de veludo da cama dele, lembro-me que espreitei pela janela e vi um dos campanários da Notre Damme. Nessa altura não me apercebi que era a Notre Damme que me estava a ver a mim, do seu campanário.
E não demorou muito a que esse meu amor eterno me expulsasse de sua vida. Na verdade, foi nessa mesma noite. Depois de fazermos amor e de me enterrar naquele veludo vermelho, que ele me puxou para fora e de rompante abriu a porta.

Silêncio. Abri as mãos e senti a minha pele gelada na Primavera de Paris. O vão da escada estava escuro e aos apalpões atingi o interruptor e quase por magnetismo acendi-o. Á minha frente estava uma rapariga nua e desgrenhada, parada no meio da escada a olhar para mim com uns grandes olhos fundos.
Com o horror a percorrer a minha consciência, percebi que era Eu. Reflectida no espelho do elevador. E quando comecei a agarrar nas minhas roupas que ele tinha atirado para o chão, ouvi passos na escada. Num ímpeto de sobrevivência, agarrei nos meus trapos e escondi-me dentro do elevador. E foi então que via outra rapariga chegar e tocar à porta. E ele abriu, como se estivesse surpreendido.
“Viu-a pela janela” pensei. E talvez já nada pudesse piorar. Mas podia.

Vesti-me e sai pela mesma porta onde a rapariga tinha entrado e dei-me conta que a madrugada ainda não tinha florescido naquela noite e os ossos enregelaram-se com o orvalho. Esquecera o casaco lá naquele casa e o metro já estava fechado.
Á noite, por Paris estrangeiro, fui tendo frio nas ruas e nas bordas dos prédios. Fui tendo frio nas frestas das praças e à frente da Notre Damme, onde humildemente me prostrei. Fui tendo frio em mim mesma.
E de manhã, acordei ao pé do Sena, enroscada num banco ao pé dum sem abrigo qualquer. Agora também eu era um qualquer.

Agora de mãos dadas com o meu amor à porta daquele prédio, lembrei-me que continuava a ser uma qualquer. Continuamos parados à porta do prédio, e tudo aquilo me era tão familiar que pensei que podia vomitar. Ele sentiu o meu enjoo e longe de saber o que se passava, sorriu-me, achando que eu estava grávida.

Mas o meu pensamento parou ali à porta e já dali não saiu. Que ingénua que eu era.
E de repente percebi que a ingenuidade era uma doença que me estava grudada na pele, pior que a gravidez.
Porque eu seria sempre incapaz de entender o futuro. A nudez em Paris, podia estar à minha espera, em cada esquina.

Por isso quando chegamos ao metro, despedi-me dele para sempre.

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