Lavo a cara de manhã, água fresca a espevitar a vida. Pronta para a guerra, batalha a batalha vamos enfrentando todos os medos, todos os fantamas doces que nos manipulam e nos querem dar a mão para nos sugar a pele dois minutos mais tarde. As piores guerras são as que parecem brincadeiras de crianças, as que nos derretem por dentro. A pior batalha é aquela onde aprendemos que temos que deixar o coração guardado no cacifo, quieto. A salvo dos inimigos. E que o pior inimigo sou eu, que sorrio e cedo o lugar.
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Monday, May 02, 2022
Tuesday, April 19, 2022
Quebra-cabeças
As melhores, mais doces e suaves memórias que
tenho são da minha escola primária. Nela, gostava do enorme espaço que tínhamos,
terrenho de gravilha onde se assavam castanhas no Outono e dançávamos as
marchas populares no início do Verão. Do campo de futebol onde jogávamos ao lencinho
e do outro terreno, espaço inculto cheio de mato, um muro de tijolos meio
desfeitos e uma árvore enorme, cuja copa nos abrigava em dias de muito calor. Este
acho, era o nosso espaço favorito. No início da primavera, saíamos desembestados
da porta da nossa sala de aula para o recreio e o ar gentil e morno da manhã
acolhia-nos e incitava-nos a explorar. Saltávamos do muro, apanhávamos plantas,
imaginávamos mil e uma brincadeiras naquele espaço sem nada e onde nós víamos tanto.
Lembro-me de uma mala azul da cor do céu, pequena, que eu usava a tiracolo. Lá
dentro, carregava sempre um pequeno lanche para a manhã que era passada na
escola. O meu ritual era sempre o mesmo e é disso mesmo que sinto saudade.
Gostava de imaginar que fazia um piquenique e por isso sentava-me debaixo da árvore
com o meu lanche, uma peça de fruta ou uma bolacha, como se estivesse no campo.
Lembro-me de todos estes objetos, do sítio onde me sentava e do cheiro a mato que
estava por todo o lado. Era um cheiro de liberdade, de exploração, de tudo o
que o futuro prometia. Dentro dessa minha mala, eu punha também todas as
noites, um pequeno quebra-cabeças que me tinham oferecido e que depois de comer
o lanche de manhã, eu fazia. Por isso, sempre que pego neste quebra-cabeças
sinto este cheiro inebriante e um pouco de mim ainda sente o convite para fazer
um piquenique e ver o que o futuro me promete.
Wednesday, March 09, 2022
Para sempre.
Há uns anos vivi durante uns largos meses numa cidade do Sul. Quente, quente como no deserto. No Verão, a cidade estava vazia. As pedras brancas intactas ecoavam um silêncio que não se propagava e que ali ficava preso. O calor era demasiado insuportável para se viver, por isso o dia era uma espécie de Inferno, onde em fila, os mortos-vivos esperavam. Finalmente quando chegava a madrugada, lembro-me de se levantar uma brisa. Um pequeno arrepio pela pele, o céu ainda escuro mas já claro, dava uma vontade de viver tudo, sair pela janela e voar. Cantar, cantar tudo o que ia cá dentro, amar sem barreiras. Beber-te até acabares. Mas depois o Sol abria-se e esmagava-nos.
Foi num desses Verões que a conheci. A face calma, o sorriso fácil.
Partilhamos trabalho, um projeto que se concretizaria no fim do Outono. Para
fugir ao calor, eu chegava sempre cedo. Ninguém lá estava, a não ser ela.
Sentada numa mesa da esplanada velha. Bebia um café, lia um livro. Ninguém lá
estava a não ser eu. Havia qualquer coisa neste quadro que me apertava o
coração, mas eu não sabia o quê. Falava com ela, todos os dias partilhávamos o
café. A face sempre calma, o sorriso sempre fácil. A certa altura percebi que
ela contava com a minha presença. “Ontem não vieste beber café”. Outras vezes
perguntava-me se vivia ali sozinha e o que fazia ao tempo. “Sim. Vivo sozinha.
Escrevo, escrevo todas as noites num bar ao pé de minha casa”. Um dia sugeriu
que fizéssemos companhia uma à outra. Percebi que já há muito tempo pensava
nisso. Olhava para mim e via uma solidão semelhante à sua. Mas eu, eu não nunca
aprendi a reagir bem às pessoas que me procuravam. Um vulcão acendeu-se
instantaneamente no meu coração e um frenesim de fuga se apoderou de mim. Como
sempre. A ideia de alguém permanente e colado nas minhas pegadas deixava-me em
pânico. O Outono chegou, o projeto cumpriu-se. Depois, um dia deixei
repentinamente a cidade e voltei a Lisboa. A vida tinha dado uma grande volta e
não tive tempo de me despedir. Nesse Inverno, pensei muitas vezes nela. Será
que ainda lá estava na esplanada a beber café? Será que tinha encontrado outra
companhia? “Por certo que sim”, pensava eu. “Haverá mais gente”, pensava eu.
Mas haveria mesmo? “Tenho de lhe escrever”. Mas não escrevi.
Entretanto chegou a Primavera. Nova vida floria, e também em mim nova vida
floriu. Quando me preparei para receber esta nova mudança, abri o computador e
li a mensagem que trazia a notícia da sua morte. Tinha tirado a sua própria
vida, quando saltou da janela propositadamente. Nunca saberei se a minha
companhia lhe teria prolongado a vida ou se todo este xadrez só aconteceu na
minha cabeça perturbada por tantas vezes querer saltar da janela. É uma culpa
que carregarei para sempre. Quando eu morrer e a encontrar, posso finalmente
pedir-lhe desculpa e então saltaremos as duas juntas.
Sunday, February 06, 2022
Sol de Inverno
Por vezes anseio como uma súplica por um dia de chuva. Nuvens cinzentas, a água corrida que tudo limpa. Há dias em que não suporto o Sol aberto a queimar-me os olhos, a paisagem aberta e escancarada à minha frente. Tudo o que de mal me assola é solto como se o espaço convidasse a que a caixa de pandora se abrisse para sempre. Toda esta claridade é insuportável. Um dia de chuva combina com a minha mágoa, a minha permanente culpa. E a água limpa-me os olhos, é preciso descarregar para seguir em frente. Porque seguir em frente é o único caminho. Mas é impossível seguir em frente com tanto peso nos ombros e os olhos tão abertos por uma claridade que nos mostra os monstros que em nós vivem.
Friday, January 14, 2022
Dias maus
Como assim não é para se escrever nos dias maus? Não têm uma fotografia os dias maus? Nos dias bons, estou ocupada a ser feliz, não tenho tempo (nem razão) para escrever. Mas os dias maus… nos dias maus é que tudo anda às voltas cá dentro. Aquele estranho que nos repreende na rua é capaz de nos pôr a duvidar do que valemos. Será que o Mundo estaria melhor sem mim? Talvez não. Mas eu estaria melhor sem o Mundo. Que boas fotografias dão os dias maus ironicamente. É que sem eles, não havia poesia, levantar no dia seguinte não seria tão bom e abraçar o Mundo do qual aceitamos fazer parte, não seria uma descoberta tão excitante. Hoje está um belo dia de Sol, e esse Sol entra pela minha janela, desde na minha mesa e ilumina-me enquanto escrevo.
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