Maria partiu todos os corações quando era muito
jovem. Social, faladora e ciente de como chamar as atenções isso nunca lhe foi
dificil. Desde muito cedo que assimilou a necessidade de se impôr num mundo onde nada mais existia
para além da graciosidade, do poder do pódio e da beleza das conquistas. Trazia
inevitavelemente atrás de si, uma longa colecção de corações que acabava sempre
por destroçar. Os rapazes mais populares viam igualmente nela um prémio
apetecivel, mas eram sobretudo os rapazes tímidos e frágeis que a seguiam. Para
eles, Maria era uma espécie de Deusa,uma celebridade que enche as paginas das
historias côr-de-rosa. Dona de um corpo perfeito, o seu sorriso sempre aberto
mostrava uma aparente generosidade que a santificava. Mas aquele muro empático escondia
a sua voracidade egocêntrica: Maria colecionava
pessoas. Como uma viciada em heroina, Maria atraía os homens para os ter à
espera. O seu vício consistia nesse prazer constante de saber o desejo dos que
a rodeavam. E sempre que um partia, ela arranjava outro como para não desmanchar
aquela aurea que mantinha em sua volta e que, nem nunca se dar conta, era o que
usava para evitar confrontar-se com a sua mais profunda solidão.
Percebi, depois de a conhecer, que ela nunca
estivera apaixonada e tão pouco sabia o que era essa dor e essa alegria de
finalmente se encontrar viva. Por detras daquela fachada perfeita, escondia-se uma
imperfeição de pessoa, constantemente inacabada ou superficial. E por isso, na
correria dos seus dias sempre ocupados, Maria nunca percebeu a dor que foi
causando. No entanto, Maria valorizava a amizade acima de tudo, muito acima de
qualquer amor que pudesse ter. Era com amigos que conseguia relaxar e deixar as
suas poses. Era com amigos que aproveitava a vida, e foi com amigos que
aprendeu a ouvir outras histórias e a relativizar o seu ponto de vista, sempre
tão unilateral e pragmático.
Em mim, Maria viu uma pessoa contrastante e misteriosa.
Confessou-me a sua vida em pouco tempo, não resistindo à minha maneira
taciturna de ser bom ouvinte. Pediu-me
conselhos, expôs as suas falhas e levou-me em viagens obscuras até ao seu
passado. Assim conheci a história de Jorge, um dos seus namorados. Conheceram-se
numa festa e a Maria agradou-lhe o seu visual latino e fresco. Jorge tinha um
excelente aspecto, a sua barba por fazer rente à face era charmosa sem ser
vadia. O seu corpo alto e cuidado, a sua forma simpatica de acolher convidados,
tudo isto Maria achou delicioso. Em menos de uma semana, conseguiu levá-lo a
jantar. Mas aquela aparência em breve pôs a nú um rapaz frágil e demasiado
empenhado no conforto dos outros. Jorge era estudante de música e tocava
saxofone. Passava muito tempo sozinho e gostava da sua vida pacata e elitista
que se alimentava sempre dentro do mesmo círculo. Maria confessou-me que tivera
sido difícil convencer Jorge a sair com ela. Como quase sempre acontecia, Maria
forçava as situações até ao limite do impossível. E perante tamanha desfaçatez, Jorge sucumbiu. Porque era sempre
assim, Maria era capaz de sair depressa do pântano que causava, mas uma vez
entrando naquelas areias, sabia que Jorge jamais saira delas. E assim aconteceu,
quando ao fim de algum tempo Maria se cansou das horas que Jorge passava a
ensaiar, ou se queixou dos poucos amigos que tinha. Fora uma desilusão,
dissera-me ela. Ele não era o que prometia. Nessa altura, pela primeira vez,
percebi quão dura era a sua crueldade. A sua pretensa perfeição estilhaçou-se
aos meus pés e tudo o que conseguia ver era um Monstro embelezado.
Jorge sofreu para além do limite com aquela
separação. Mais do que perder um amor, perdera a sua identidade. Sentia que a
sua vida era ridicula, e que o seu estilo de vida melancólico era um empecilho.
Quando mais tarde o vi, ele parecia ter seguido literalmente as passadas de Maria,
borrara da sua vida a ternura e a compreensão e agora dominava a arte do
pragmatismo, e procurava incenssantemente a luz de qualquer ribalta.
Foi nessa altura que também eu deixei Maria. Cansada
de esperar que o Monstro começasse a amar, percebi que não havia chão para que
medrassem rosas. Nunca Maria mudaria quem era. Por isso escrevi-lhe uma carta
em que me despedi da nossa breve amizade, dizendo-lhe que seguiramos caminhos
diferentes e que não mais fariam sentido as suas confissões. E não mais pensei
nisso, até receber as cartas e os telefonemas destroçados de Maria que vez após
vez me pediam a nossa amizade de volta. Dizia que eu lhe fazia falta e não
compreendia as minhas razões. Quando lhe disse que a empatia entre nós se tinha
esvaído e que eramos duas pessoas demasiado diferentes para irmos tão
paralelas, Maria percebeu que era uma desilusão para mim e que não dera tudo o
que prometera. E eu dei-me conta que sem querer, fui o seu primeiro Monstro.