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Saturday, July 05, 2014

A Casa do Rio

(inspirado no conto de Sophia de Mello Breyner Andresen, "A casa do Mar")

Para o Ricardo.


A casa existe na cidade, como um casulo resguardado que mantém a sua própria identidade. Da envolvência suspendem-se gritos de luz e ruídos de semáforos que nunca perturbam a casa. Ela existe paralelamente a eles e ao mesmo tempo existe no meio deles, ignorando-os.
Quando se entra no vão da escada, sente-se o fresco do Rio que está lá mais longe. É aí que a casa começa, no inicio das escadas de madeira que conduzem ao último apartamento. Quem sobre as escadas, é obrigado a dar passos curtos e a encostar o corpo nas paredes, como se a própria casa exigisse a intimidade, tornando impossível aos visitantes não se envolverem com ela.
Os pequenos lanços de escada conduzem ao último patamar. Dali, apoiando a mão no ferro, vê-se o vão da escada que se percorreu e as plantas exóticas que alguém nunca se esquece de regar. Ali, sente-se o cheiro de mistérios e de novas especiarias. A porta de madeira sustem-se impenetrável, e aguarda na expectativa os visitantes que subiram aquelas escadas em busca de Outro Mundo. Que perscrutaram nas sombras frescas os movimentos vanguardistas, como que adivinhando que dali se vê o Mundo por outra lente. 
Quando se mete a chave à porta, ela cede com um soluço. Após a violação sente-se uma electricidade que chega ás pontas dos dedos e é acalmada pelo cheiro da Casa que abafa todos os outros cheiros. Porque a Casa impõe-se, comanda o tempo e o som. A pouca mobília existente cria espaços densos onde dança a luz filtrada pelas portadas, normalmente fechadas para não deixar entrar o calor ou o frio excessivo. A Casa é assim, mediadora e é nela que tudo se passa.
Do corredor estreito surge, à direita, a cozinha e a sala e à esquerda o escritório. A meio, entre estes dois polos, está o quarto.
Só as janelas do escritório dão para o Rio. Assim que se fecha a porta de madeira, esta é a divisão da casa mais apetecível. Da entrada, vê-se a enorme secretária preta, de tampo de vidro e os pequenos mapas onde repousam viagens. Como se a própria divisão tivesse viajado pelos setes mares e conhecesse, ela própria o sabor dos cinco continentes.
Para além da secretária que se encontra perpendicularmente à janela, só existem duas estantes, estrategicamente colocadas para coleccionar conhecimento e amor catalogados em livros e em discos. Perdidos pelas prateleiras estão também postais e lembranças: um leque de Sevilha e uma piranha da Amazónia conferem um ar de museu intimista, onde se conta uma história sem princípio e onde se decide, a cada segundo de ar engolido, o fim.
É desta janela que se tem a vista mais arrebatadora. Quando se abre a portada e se olha em frente, o azul do Rio perde-se nos olhos. Ao longe vê-se a ponte que liga a cidade ao infinito, tornando a casa num princípio de Adeus inadiável.
De noite, a água fica iluminada pelas luzes azuis e vermelhas da ponte que serpenteia o rio. Com a janela aberta, entra a tépida luz do candeeiro para dentro da casa, despindo-a. Quando a lua está cheia este efeito é ampliado e o rio torna-se pastoso no sítio onde incide o luar. E é impossível a quem se debruça na janela não ficar preso. É assim que a Casa mantém os visitantes como reféns, quais prisioneiros dum Mundo demasiado belo.
No Verão, quem abre a janela sente também o cheiro a flores e o ruído dos grilos que se fixam nos jardins das pequenas casas velhas que se entrepõem entre o Rio. Quando se espreita perpendicularmente vê-se a rua de alcatrão e os poucos carros que passam assustam a Casa, fazem-na enquadrar-se numa realidade que não a habita.
O escritório no entanto, não tem só esta divisão. Entre as duas estantes que se dispõem em frente à secretária fica uma abertura para outra divisão contígua. Neste espaço totalmente branco, não há qualquer mobília ou adereço. É um espaço continuamente à espera de ser ocupado por ideias e por isso mesmo mantém o doce desígnio de todas as possibilidades. À noite apetece jogar ao quarto escuro e de dia, quando o sol entra generoso, a música de rádio que vem de fora, pela janela aberta obriga a ocupar o espaço com uma dança espontânea, que enfeita o ar de movimentos.
Com o tempo algumas coisas ocuparam aquele espaço. A primeira foi um mapa do mundo gigante sobreposto na parede imaculada. Neste Mapa acendem-se sonhos e desenham-se rotas pelos dedos sôfregos de quem vive feliz, permanentemente insatisfeito. Em frente ao Mapa fica a outra janela que dá para o Rio. E quem acaba de imaginar viagens à Austrália e à China vira-se para o Rio e na corrente de vento azul cresce uma bolha no lugar do coração: tudo é possível.
Mais recentemente, há uma pequena mesa redonda de metal preta entre o mapa e a Janela. É aqui que ele escreve, e as suas sobrancelhas movimentam-se com os movimentos do Rio e das nuvens que o cercam. Ao longe só se ouvem os sons suaves das teclas do computador onde crescem personagens que indignadas ou aventureiras se espalham pelo vão de escada, fazem ranger as madeiras e apagam as luzes. São os fantasmas que habitam a casa e é ele que os cria.
O lado direito da Casa é ocupado pela cozinha e pela sala. Percorrendo o corredor no sentido contrário ao escritório chega-se à cozinha. Aqui reina a ordem e arrumação. Os pratos pretos estão meticulosamente arrumados nas prateleiras brancas e o frigorífico ronca cronometricamente. Na cozinha vive um pássaro que se alimenta das migalhas do pão do pequeno-almoço. Entra normalmente pela chaminé e sai pelas janelas abertas, carrega no bico o sustento dos filhos instalados no ninho.
Na cozinha cheira a castanhas e a vinho do Porto, a compota e comida rápida. Misturam-se sabores tradicionais empacotados com a ligeireza de saladas com temperos chineses e a tentação de sobremesas carregadas de chocolate.
Embora a cozinha seja um espaço diminuto, tem tudo o que é preciso para confeccionar as refeições enquanto, estranhamente parece vazia.
Ao lado da cozinha fica a sala. Tal como na divisão anterior, a janela desta divisão tem uma vista alargada para a linha de caminho de ferro que se estende no horizonte de ervas secas e amarelas. De um lado, vê-se a cidade cintilante com telhados de vidro que brilham à noite. Do outro, vê-se a anti-cidade: o afastamento gradual da luz e a entrada num deserto de erva e de barracões ocasionais que permitem ver a base das nuvens em dias de aguaceiro.
Esta é a divisão mais prometedora de toda a casa. As suas paredes brancas contrastam com a mesa comprida e o sofá único, ambos pretos. As poucas peças de mobília podiam falsamente indiciar a pobreza das relações que aqui se estabelecem, mas é no estalar amplo da madeira que se começam as conversas. É no sofá que o amor aquece o copo e a bebida fica ainda mais fácil de tragar. É na mesa que a árvore de Natal espreita os sonhos antigos.
E é aqui o coração da Casa. É aqui que ela mais afastada da realidade está, ainda que seja da realidade que se fala, em doses leves, misturadas com ilógica.
E assim, fuma-se e bebe-se a vida num sofá solitário onde as tábuas rangem mantendo a Casa na Terra do Nunca, ou em Oz. É esta a característica da Casa: inventa o que ainda não existia e não se parece verdadeiramente com Nada que já existisse antes, quebrando todos os preconceitos, mesmo até o próprio conceito de preconceito.
E assim, quebram-se os copos e as próprias bebidas, inventa-se o amor em sexo debaixo de uma luz frouxa de candeeiros que voam de fora. E a noite foge em doses de segundos pelas frestas. E por isso, no dia seguinte repete-se.
A meio caminho da Casa está o quarto. Esta é a única divisão interior e a luz chega-lhe por osmose das janelas do Rio e da linha de comboio. Ao contrario de todas as outras divisões o quarto está  preenchido com uma cama uma comoda e um guarda-fatos.  Em cima da comoda está um candeeiro que espalha estrelas pela noite do quarto lembrando outros lugares e outras historias. Mas de noite, o quarto é selvagem e irrequieto. Mantem a paixão acesa como se quisesse durar para lá do tempo. A luz vermelha indicia muitas vezes que o sexo é quase destrutivo: de preconceitos e de muitos Antigos e Passados. Porque a Casa só quer saber do Futuro. E por isso, a paixão é mais intensa porque é prometida.
Mas de manha o quarto enche-se de sonolências, porque é demasiado apetecivel. Os lençois suaves convidam a mais uma divagação matinal, onde se percorrem outros momentos. Nesta altura e só nesta altura é permitido o Passado. E a chuva cai lá fora mas só o seu rumor chega ao quarto. Assim como a luz é indirecta, também as percepções o são e chegam ao coração lambidas por uma onda retardadora de nostalgia.
Assim a Casa renova-se, começa um novo dia. Como se amanhecesse nela um novo trabalho, um novo objectivo. Porque está sempre à frente, nela guarda-se o destino da aleatoriedade.
E nela as coisas são, nunca foram.   

(Novembro de 2010) 

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