(inspirado
no conto de Sophia de Mello Breyner Andresen, "A casa do Mar")
Para
o Ricardo.
A
casa existe na cidade, como um casulo resguardado que mantém a sua própria
identidade. Da envolvência suspendem-se gritos de luz e ruídos de semáforos que
nunca perturbam a casa. Ela existe paralelamente a eles e ao mesmo tempo existe
no meio deles, ignorando-os.
Quando
se entra no vão da escada, sente-se o fresco do Rio que está lá mais longe. É
aí que a casa começa, no inicio das escadas de madeira que conduzem ao último
apartamento. Quem sobre as escadas, é obrigado a dar passos curtos e a encostar
o corpo nas paredes, como se a própria casa exigisse a intimidade, tornando
impossível aos visitantes não se envolverem com ela.
Os
pequenos lanços de escada conduzem ao último patamar. Dali, apoiando a mão no
ferro, vê-se o vão da escada que se percorreu e as plantas exóticas que alguém
nunca se esquece de regar. Ali, sente-se o cheiro de mistérios e de novas
especiarias. A porta de madeira sustem-se impenetrável, e aguarda na
expectativa os visitantes que subiram aquelas escadas em busca de Outro Mundo. Que
perscrutaram nas sombras frescas os movimentos vanguardistas, como que
adivinhando que dali se vê o Mundo por outra lente.
Quando
se mete a chave à porta, ela cede com um soluço. Após a violação sente-se uma
electricidade que chega ás pontas dos dedos e é acalmada pelo cheiro da Casa
que abafa todos os outros cheiros. Porque a Casa impõe-se, comanda o tempo e o
som. A pouca mobília existente cria espaços densos onde dança a luz filtrada
pelas portadas, normalmente fechadas para não deixar entrar o calor ou o frio
excessivo. A Casa é assim, mediadora e é nela que tudo se passa.
Do
corredor estreito surge, à direita, a cozinha e a sala e à esquerda o
escritório. A meio, entre estes dois polos, está o quarto.
Só
as janelas do escritório dão para o Rio. Assim que se fecha a porta de madeira,
esta é a divisão da casa mais apetecível. Da entrada, vê-se a enorme secretária
preta, de tampo de vidro e os pequenos mapas onde repousam viagens. Como se a
própria divisão tivesse viajado pelos setes mares e conhecesse, ela própria o
sabor dos cinco continentes.
Para
além da secretária que se encontra perpendicularmente à janela, só existem duas
estantes, estrategicamente colocadas para coleccionar conhecimento e amor
catalogados em livros e em discos. Perdidos pelas prateleiras estão também
postais e lembranças: um leque de Sevilha e uma piranha da Amazónia conferem um
ar de museu intimista, onde se conta uma história sem princípio e onde se
decide, a cada segundo de ar engolido, o fim.
É
desta janela que se tem a vista mais arrebatadora. Quando se abre a portada e
se olha em frente, o azul do Rio perde-se nos olhos. Ao longe vê-se a ponte que
liga a cidade ao infinito, tornando a casa num princípio de Adeus inadiável.
De
noite, a água fica iluminada pelas luzes azuis e vermelhas da ponte que
serpenteia o rio. Com a janela aberta, entra a tépida luz do candeeiro para
dentro da casa, despindo-a. Quando a lua está cheia este efeito é ampliado e o
rio torna-se pastoso no sítio onde incide o luar. E é impossível a quem se debruça
na janela não ficar preso. É assim que a Casa mantém os visitantes como reféns,
quais prisioneiros dum Mundo demasiado belo.
No
Verão, quem abre a janela sente também o cheiro a flores e o ruído dos grilos
que se fixam nos jardins das pequenas casas velhas que se entrepõem entre o
Rio. Quando se espreita perpendicularmente vê-se a rua de alcatrão e os poucos
carros que passam assustam a Casa, fazem-na enquadrar-se numa realidade que não
a habita.
O
escritório no entanto, não tem só esta divisão. Entre as duas estantes que se
dispõem em frente à secretária fica uma abertura para outra divisão contígua.
Neste espaço totalmente branco, não há qualquer mobília ou adereço. É um espaço
continuamente à espera de ser ocupado por ideias e por isso mesmo mantém o doce
desígnio de todas as possibilidades. À noite apetece jogar ao quarto escuro e
de dia, quando o sol entra generoso, a música de rádio que vem de fora, pela
janela aberta obriga a ocupar o espaço com uma dança espontânea, que enfeita o
ar de movimentos.
Com
o tempo algumas coisas ocuparam aquele espaço. A primeira foi um mapa do mundo
gigante sobreposto na parede imaculada. Neste Mapa acendem-se sonhos e
desenham-se rotas pelos dedos sôfregos de quem vive feliz, permanentemente
insatisfeito. Em frente ao Mapa fica a outra janela que dá para o Rio. E quem
acaba de imaginar viagens à Austrália e à China vira-se para o Rio e na
corrente de vento azul cresce uma bolha no lugar do coração: tudo é possível.
Mais
recentemente, há uma pequena mesa redonda de metal preta entre o mapa e a
Janela. É aqui que ele escreve, e as suas sobrancelhas movimentam-se com os
movimentos do Rio e das nuvens que o cercam. Ao longe só se ouvem os sons
suaves das teclas do computador onde crescem personagens que indignadas ou
aventureiras se espalham pelo vão de escada, fazem ranger as madeiras e apagam
as luzes. São os fantasmas que habitam a casa e é ele que os cria.
O
lado direito da Casa é ocupado pela cozinha e pela sala. Percorrendo o corredor
no sentido contrário ao escritório chega-se à cozinha. Aqui reina a ordem e
arrumação. Os pratos pretos estão meticulosamente arrumados nas prateleiras
brancas e o frigorífico ronca cronometricamente. Na cozinha vive um pássaro que
se alimenta das migalhas do pão do pequeno-almoço. Entra normalmente pela
chaminé e sai pelas janelas abertas, carrega no bico o sustento dos filhos
instalados no ninho.
Na
cozinha cheira a castanhas e a vinho do Porto, a compota e comida rápida.
Misturam-se sabores tradicionais empacotados com a ligeireza de saladas com
temperos chineses e a tentação de sobremesas carregadas de chocolate.
Embora
a cozinha seja um espaço diminuto, tem tudo o que é preciso para confeccionar
as refeições enquanto, estranhamente parece vazia.
Ao
lado da cozinha fica a sala. Tal como na divisão anterior, a janela desta
divisão tem uma vista alargada para a linha de caminho de ferro que se estende
no horizonte de ervas secas e amarelas. De um lado, vê-se a cidade cintilante
com telhados de vidro que brilham à noite. Do outro, vê-se a anti-cidade: o
afastamento gradual da luz e a entrada num deserto de erva e de barracões
ocasionais que permitem ver a base das nuvens em dias de aguaceiro.
Esta
é a divisão mais prometedora de toda a casa. As suas paredes brancas contrastam
com a mesa comprida e o sofá único, ambos pretos. As poucas peças de mobília
podiam falsamente indiciar a pobreza das relações que aqui se estabelecem, mas
é no estalar amplo da madeira que se começam as conversas. É no sofá que o amor
aquece o copo e a bebida fica ainda mais fácil de tragar. É na mesa que a
árvore de Natal espreita os sonhos antigos.
E
é aqui o coração da Casa. É aqui que ela mais afastada da realidade está, ainda
que seja da realidade que se fala, em doses leves, misturadas com ilógica.
E
assim, fuma-se e bebe-se a vida num sofá solitário onde as tábuas rangem
mantendo a Casa na Terra do Nunca, ou em Oz. É esta a característica da Casa:
inventa o que ainda não existia e não se parece verdadeiramente com Nada que já
existisse antes, quebrando todos os preconceitos, mesmo até o próprio conceito
de preconceito.
E
assim, quebram-se os copos e as próprias bebidas, inventa-se o amor em sexo
debaixo de uma luz frouxa de candeeiros que voam de fora. E a noite foge em
doses de segundos pelas frestas. E por isso, no dia seguinte repete-se.
A
meio caminho da Casa está o quarto. Esta é a única divisão interior e a luz
chega-lhe por osmose das janelas do Rio e da linha de comboio. Ao contrario de
todas as outras divisões o quarto está
preenchido com uma cama uma comoda e um guarda-fatos. Em cima da comoda está um candeeiro que
espalha estrelas pela noite do quarto lembrando outros lugares e outras
historias. Mas de noite, o quarto é selvagem e irrequieto. Mantem a paixão
acesa como se quisesse durar para lá do tempo. A luz vermelha indicia muitas
vezes que o sexo é quase destrutivo: de preconceitos e de muitos Antigos e
Passados. Porque a Casa só quer saber do Futuro. E por isso, a paixão é mais
intensa porque é prometida.
Mas
de manha o quarto enche-se de sonolências, porque é demasiado apetecivel. Os
lençois suaves convidam a mais uma divagação matinal, onde se percorrem outros
momentos. Nesta altura e só nesta altura é permitido o Passado. E a chuva cai
lá fora mas só o seu rumor chega ao quarto. Assim como a luz é indirecta,
também as percepções o são e chegam ao coração lambidas por uma onda
retardadora de nostalgia.
Assim
a Casa renova-se, começa um novo dia. Como se amanhecesse nela um novo
trabalho, um novo objectivo. Porque está sempre à frente, nela guarda-se o
destino da aleatoriedade.
E
nela as coisas são, nunca foram.
(Novembro de 2010)