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Sunday, July 08, 2012

A História do Rato do Campo e do Rato da cidade



Quando o pai lhe pediu para descer até à sala de estar, Sofia deixou o quarto que cheirava a rosas e a túlipas frescas e demorou-se pelos corredores brancos da enorme vivenda onde vivia. O seu vestido amarelo - pálido esvoaçava como uma ave em equilíbrio ao sabor da corrente.
O seu sítio preferido era um canto, junto à entrada de um dos quartos semi-abandonados à espera de visitantes que sempre tardaram em chegar. Dali, ela via a casa caíada de silêncio, mantendo-se numa sombra estratégica que a isolava de tudo.O cheiro das flores vinha do jardim selvagem, embrutecido pela falta de pessoas que foram deixando a vila ao longo dos anos. O pai de Sofia fora um dos que ficara, quando a mulher morrera ele fechara-se atrás das cortinas da casa, como se de si próprio fechasse as janelas. Sofia crescera naquele ambiente nostálgico e doce, em que tudo eram sombras e expectativa.
Quando era pequena, divertia-se a correr pelos pinhais que se estendiam ao longo de um dos lados da enorme casa, o cheiro fresco das pinhas crepitava como uma fogueira e Sofia sentia a liberdade como um tapete vermelho estendido aos seus pés que ela pisava devagar, com medo de sujar.
Mas agora, quase uma mulher, Sofia fartava-se daquela vida arrastada que levava entre a casa branca e a pequena vila, as mulheres rudes que lhe tapavam o vestido ou a mandavam compôr-se quando ela aparecia esfarrapada das suas explorações às falésias, que enclausuravam a vila na sua pequenez.   Por isso, quando naquela tarde de Verão o pai a chamou à sala e lhe disse que chegara a hora de partir para a cidade, Sofia acentiu. Voltou para fazer a sua mala, e equanto olhava pela janela a ponta de mar, não sentia saudade nem excitação.
Nesse Outono, Sofia partiu para a cidade de comboio. A viagem encheu-lhe o coração como uma bolha em equilibrio, antes de rebentar. Os arranha-céus, as estradas compridas e escuras, os altos candeeiros que cuspiam luz indesejada à noite, tudo isso Sofia detestou desde o primeiro momento. Dentro do seu pequeno apartamento incrustrado num prédio de tijolo, com umas minúsculas escadas de salvação nas traseiras, esforçava-se por não ir à janela e não ver toda aquela amálgama de pessoas e barulho.
Odiava intensamente os sinais de trânsito e os carros pretos e vermelhos que chiavam como loucos. Mas o que ela odiava ainda mais eram as pessoas, a forma como falavam alto e se vestiam de forma exótica. O pai dissera-lhe, antes de partir “Tem cuidado Sofia, as pessoas da cidade são perigosas”. E ela via agora esse perigo, a loucura que destilava da sua respiração. Era como se não existessem regras, tudo era permitido dentro daquele grande jogo de luzes.
No fim do Outono, a cidade encheu-se de chuva miuda e o sol baixo deixava nos prédios cinzentos um tom de mel. Farta de estar escondida, Sofia decidiu dar um passeio até ao parque da cidade. Com a gola do caso subida, foi andando por entre as árvores altas como os prédios, as grandes avenidas do jardim estavam cheias de folhas secas amarelecidas pela chuva e faziam do chão um tapete fofo e silencioso. No coração do jardim, um lago enorme recortava a paisagem aos olhos de Sofia. A água calma, balançava ao som de música que vinha da redondeza, dando-lhe vida.  
E ao som dessa música, um rapaz vestido de cores alegres abria os braços, convidava o vento a entrar pelo casaco. Sofia viu-o de costas e aproximou-se sem se aperceber. Mas ele viu-a e sorriu-lhe “Que bela tarde de Outono”. Ela respodeu-lhe que sim, que era uma bela tarde, sem conseguir tirar os ouvidos da rede daquela música eléctrica. “Vives aqui?” perguntou-lhe ele enquanto dava pequenos pontapés nas pedras e olhava o cimo das árvores, perfeitamente enquadrado com o ambiente. “Sim, desde o início do Outono”.  Rapidamente ele lhe estendeu a mão “Sou o Victor, também cheguei há muito pouco tempo, vivo ali do lado Norte”. Ele falava rápido, mexia-se com aquela pressa que Sofia via nas pessoas, e pela primeira vez gostou daquela falta de regras que o fazia ser tão natural como o simples cair das folhas. 
Deram uma volta pelo parque, sempre num passo acelerado, ele dizia-lhe “Mal posso esperar pela neve, isto deve ser ainda mais bonito tudo branco”. A chuva tornara-se mais intensa mas isso não os impediu de subir ao coreto do jardim, tomar um café numa esplanada com chapéus redondos e mesas de vidro transparente como a água. Só quando a noite chegou ele falou em apanhar o autocarro. Sofia pouco sabia dos transportes públicos, apanhava sempre o mesmo metro para ir para a escola que frequentava. Mas Victor dirigiu-se à paragem do autocarro decidido. “Para ondes vais?” perguntou-lhe, enquanto olhava os horários e os destinos. “Para o centro” disse Sofia a medo e como se isso não resolvesse o problema, disse-lhe a morada. “Ah, mas o 22 pára lá, olha aqui”. Um pouco envergonhada, ela seguiu o dedo dele e consultou o placard, onde estava escrito que o autocarro apareceria dentro de três minutos. As luzes piscavam intensamente, uma mulher de cabelo comprido enrolado numa encharpe baloiçava as mãos dentro de um casaco larguíssimo enquanto dois outros jovens conversavam animadamentee fumavam um cigarro. “Amanhã gostava de ir até ao rio, queres vir comigo?” disse Victor, enquanto olhava o fundo da rua para ver se o seu autocarro lá vinha. “Podemos encontrarmo-nos lá depois do almoço”. Foi só o tempo de Sofia dizer que sim, e desaparecer dentro do autocarro que afinal parava mesmo à porta da sua casa.
No dia seguinte Sofia encontrou-se com Victor ao pé do rio. Na verdade, parecia que ele estava sempre um passo adiantado, como se controlasse o tempo. Pedia a sofia para lhe mostrar a cidade, mas Sofia não conhecia a cidade e foi preciso que ele lha mostrasse sempre de olhos no ar, com a cabeça levantada para o infinito. Percorreram as ruas a pé, o frio escapava-se entre as suas respirações, saboreavam os pequenos cafés pelo caminho, os chocolates quentes que bebiam, as pessoas com quem Victor falava, sempre desejoso de tudo o que lhe aparecia pela frente. Foi em menos de uma semana que Sofia sabia estar irremediavelmente apaixonada por ele. Era uma atracção tão mortal quanto a dum poço fundo cheio de segredos.
Victor apresentou-lhe os seus amigos, convidou-a para os jantares em sua casa e Sofia descobriu-se uma pessoa cheia daquela adrenalina. Falava alegremente com as pessoas, respirava as suas experiências, divertia-se naquelas noites intermináveis onde saíam para dançar e cantar até que o corpo estivesse esgotado. Os dias eram preenchidos, as gotas do dia lambidas até estarem secas e cada vez que Sofia sentia estar mais dentro daquela grande festa, mais se sentia apaixonada por Victor. Quanto mais ela alcançava, mais havia para alcançar.
Os dias avançavam sem piedade, não dando hipotese a qualquer hesitação. E um dia, enquanto estavam na casa de Victor para uma festa, Sofia procurava-o por entre uma pequena multidão que fazia petiscos na cozinha e dançava na sala. Como não o encontrando, perguntou ao seu amigo João, que vinha da varanda. “Está lá em cima, no terraço” disse-lhe João com um ar profundo que Sofia não notou. Agradeceu-lhe e subiu as pequenas escadas da varanda, e encontrou Victor deitado no terraço a olhar as estrelas.
E como não resistindo àquele surrealismo, deitou-se com ele e beijou-o como se tentasse sorver as estrelas daquele Universo. Mas antes que conseguissem dizer algo, João apareceu no terraço e chamou Victor. Sofia deixou-se estar sentada com uma ponta de frio enquanto João esperava impacientemente que Victor descesse as escadas à sua frente. Mas antes de se ir embora sacudiu esse frio e voltou a entrar no quente da festa, decidida a não esperar mais pelas expectativas.
Mas nessa semana algo mudou. Combinaram um cinema numa quinta-feira à noite, mas Victor não apareceu. Ao invés disso, Sofia viu o filme com os seus os seus amigos, de quem agora ela também era amiga. Victor tinha ido a outra festa e não poderia vir hoje. Mas o filme soube-lhe a pouco, Sofia olhava a porta do cinema a cada cinco minutos e consultava o seu telemóvel. Tentou ligar-lhe, mas ele não atendia. A seguir ao cinema decidiram ir a um bar beber um copo. Sofia seguiu-os incapaz de se manter quieta, percorrearam as ruas da cidade quase deserta, por entre as luzes incandescentes. Um frio apoderava-se dela, sem que o permitisse a entrar; João falava-lhe e ela respondia animada, lutando para que aquela nostalgia não a consumisse.
Mas era tarde de mais. Sem dar por isso o Inverno tinha chegado enquanto ela estava distraida e na primeira noite em que nevou, Sofia recebeu um telefonema de Victor a avisá-la que se ia embora da cidade. Lá fora estava tudo branco e quis dizer-lhe isso, mas compreendia que Victor estava sempre à frente, até do Inverno. A neve para ele já tinha chegado.
A festa de despedida ficara adiada para depois do Natal, e por isso ela fez a mala para voltar para casa onde o pai a esperava para a ceia. O Inverno ali era rigoroso, mas sem neve. O vento uivava enquanto Sofia sem nada que a ocupasse, olhava pela janela enquanto os dedos tremiam de falta de adrenalina. Cada segundo que passava, Sofia sentia Victor cada vez mais longe, como se ao estar ali, no fim do Mundo, perdesse a capacidade de se desenvolver e de o agarrar.
O tempo estava parado, no relógio de parede da casa e dolorosamente o Natal chegou mas em tudo Sofia sentia a falta. Quando voltou ao seu pequeno apartamento a neve cobria toda a  entrada do prédio e estendia-se pelas ruas. Os carros passavam e as pessoas andavam debaixo de um nevoeiro de neve. Era como se tivessem desligado o som da cidade e tudo acontecesse num filme mudo. Sofia vestiu-se e apanhou o autocarro à porta de casa, trocou para apanhar o metro e chegou antes de todos à festa de Victor. Ele lá estava, exuberante e preenchido como sempre, cheio de planos e vida. Sofia percebeu que não o veria mais e sentiu com um jacto de consciência a falta que ele lhe ia fazer.
A Primavera chegou quando Sofia não conseguia impedir-se de andar pela cidade. Aprendera de cor os caminhos de Victor e os cafés que ele gostava. Aprendera as pessoas com quem falava e os sitios onde se demorava. E sobretudo aprendera aquela azáfama, sem a qual não conseguia viver. Por isso gastava-se nos caminhos da cidade inesgotável, chegava a casa tão cansada que se atirava para a cama e dormia profundamente. A sua obcessão tornou-se tão forte que deixou de sair com os amigos de Victor que conhecera. Nada a deixava mais proxima dele do que os sussurros da cidade ao seu ouvido. À noite deixava-se ficar pelos cafés da cidade, vestia-se de preto e expunha-se debaixo das luzes dos candeeiros, para ver as sombras dos seus passos.
A única pessoa que continuava a ver era João. Lembrava-lhe Victor, um Victor que ela conseguia agarrar e por isso menos entusiasmante. João levava-a pelos mesmos caminhos, mas cultivava um silêncio que lhe era incómodo. Quando o Verão chegou, João visitou-a no seu apartamento. A cama estava por fazer, a roupa amontoava-se há semanas pelo chão, os livros equilibravam-se em cima do lava-loiça e o microondas cheirava a comida ressequida. Sofia convidou-o a entrar com simpatia, ignorando os seus olhos inquisidores. Sentaram-se na sala, com o calor do Verão a entrar pela janela enquanto Sofia punha a música no volume mais alto e abria uma garrafa de vinho escuro como o sangue.
“Vais voltar para casa, agora que o ano acabou?” perguntou João. Sofia encolheu os ombros “Acho que não”. João fez um compasso de espera, como um jogador de xadrez experiente “ Ele não vai voltar, Sofia”. Mas Sofia olhou-o magoada e disse-lhe “Nem ele nem eu vamos voltar”. E enquanto o calor se entranhava no pequeno apartamento caótico, por entre as persinanas corridas, João beijou-a enquanto afastava a roupa em cima da cama e a deitava com uma paixão nostalgica. Fizeram amor enquanto pela janela entrava, vindo das outras janelas o Come Here, de Kath Bloom. No fim da tarde, João vestiu o seu casaco de cabedal, saltou despreocupado por cima dos CD’s que estavam no chão e deixou Sofia a dormir.
Mas no dia seguinte Sofia apanhou o comboio de volta para a sua vila sem dizer nada a João. O pai recebeu-a com aquela indiferença passiva de sempre e Sofia achou-se num sossego que a magoava e que ela sadicamente procurava. O resto do Verão passou-se entre os infindáveis pores-do-sol, as noites do baloiço com a brisa da noite sem palavras e um cansaço de não fazer nada, que era cada vez mais forte. Num desses dias, João bateu à porta. Amolecidos por aquela vida opaca, ninguém apareceu para abrir e Sofia desceu as escadas e viu João nas suas calças de ganga claras, calmamente à espera no alpendre. Os seus olhos verdes cor-de-limão brilhavam do sol e estendeu-lhe os braços num longo re-encontro.
Sofia mostrou-lhe a casa, o seu quarto branco com a longa cama de casal que tinha sido dos seus pais, a vista para o Mar da janela. Depois sairam para o jardim. O dia estava quente, insuportavelmente quente e sentaram-se num banco do jardim. Estavam sós como se o Mundo tivesse fugido deles. Aquele silêncio tão característico  instalou-se como um anjo de pedra. Sofia pôs-se de pé no banco e sentou-se na dobra mais alta, vendo a cara de João de cima. Ele olhou para ela, com dificuldade franzindo os olhos frágeis e levantou-se também. Deu uns passos no jardim e abriu a torneira da mangueira para por as mãos debaixo de água. “Cuidado, a água está muito quente” disse Sofia. O primeiro jacto de água que saiu estava de facto a ferver, mas em menos de cinco segundos a água gelada da torneira brotou-lhe nas mãos. João pegou na mangueira e atirou-a num relâmpago a Sofia que gritou com a respiração parada. A água gelada escorria-lhe pelas costas enquanto João ria como um louco. Completamente encharcada, o coração de Sofia pulsava de adrenalina enquanto roubava a mangueira de João e o fazia provar daquela delícia. E quando o êxtase se apoderou deles, rindo como delinquentes no jardim João disse-lhe “Ele voltou Sofia”.
Sabia de cor os autocarros, sabia as ligações do metro. Uma senhora com duas crianças parou para lhe perguntar onde ficava o supermercado mais próximo. Sofia deu-lhe a morada e as indicações, sem pestanejar. A vida da cidade corria em câmara lenta, e ela podia apreciar cada detalhe devagar. Apanhou a publicidade à porta do prédio, fez uma refeição rápida que comeu em cima da cama e saiu para ir comprar cigarros. Havia três anos que morava ali, e não pensava ir embora. Adorava a luz do sol reflectido nos vidros dos prédios e a música que vinha das casas. Havia sempre uma guitarra solitária na rua ou uma criança que corria atrás da bola. Os cães espreitavam pelas cortinas quando chovia e a água caia pelos beirais. Com os cigarros pediu também o jornal do dia, ao dono da tabacaria. Em vez de voltar para casa deu a volta ao bairro, e para aproveitar o sol sentou-se num banco dum pequeno jardim a ler o jornal. Não tardou muito a que uma qualquer música inundasse o ambiente, Sofia levantou os olhos para ver de que janela vinha e viu uma rapariga pálida encolhida por detrás dos vidros. Lembrando-se de si própria acenou-lhe. A rapariga correu as cortinas, mas Sofia viu-a a espreitar. Antes de ir embora para casa, Sofia deixou-lhe na caixa do correio um roteiro da cidade, com os melhores sítios para se estar num dia de sol.Nessa noite, como em tantas outras foi até ao rio depois de ter passado por vários bares. As noites eram sempre animadas e Sofia conhecia metade das pessoas daquela zona. Ali se tinha apaixonado vezes sem conta, paixões tão rápidas como fósforos que se desfaziam nas suas mãos. A última era um estudante de cinema mais novo do que ela cinco anos que se mudara para a cidade.No entanto, quando chegou ao Rio, chegou sozinha. E como acontecia em muitas daquelas noites, também João lá estava. A camisa impecável baloiçava com a brisa da noite.
“Onde está a tua namorada?” perguntou-lhe Sofia. “Em casa, a dormir”, respondeu João debruçado no paredão sentindo o cheiro forte a iodo. “Devias estar com ela, sabes”, disse Sofia como dizia tantas vezes. Mas João parecia ter um desapego natural, como se aquele anjo de pedra andasse com ele e nunca o largasse. “Não estou apaixonado” foi a sua resposta honesta. “Mas continuo à espera que isso aconteça, é possível”.E Sofia sabia bem o que era a vida sem paixão. Como muitas vezes acontecia aproximou-se dele e beijaram-se como naquela tarde em que a música entrava sem pedir licença e os virava do avesso.  Passaram a noite juntos naquela mesma cama de Sofia, com a janela aberta sem vergonha da sua excentricidade. De manhã João saiu com a vida presa nas mãos e um fio gelado a escorrer-lhe pelas costas.
E um dia Sofia abriu a caixa de correio e viu uma carta de Victor pousada contra o metal frio. Era um convite de casamento. Sofia abriu-o e viu que a data do casamento seria dali a dois meses, por baixo duma fotografia de Victor e da sua noiva, enfiada numa saia-casaco branco enquanto ele sorria flacidamente apertado pela gravata. O casamento seria no campo, para onde se queriam mudar.

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