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Tuesday, August 27, 2024

Estrela cadente

Gosto de ouvir os grilos à noite, no campo.
São como a música da noite,
o som a escorrer debaixo do céu de estrelas.
Como naquela noite em que me deitei na relva fresca,
conectada com a humidade da vida,
passou uma estrela cadente e eu senti os meus olhos
molhados.
É isso que eu quero, uma existência única.
Somos todos únicos, eu sei.
Mas eu quero essa consciência concreta, exímia.
Vivemos a espremer a vida, a coletá-la dos orvalhos
que vamos encontrando. As fodas, as montanhas-russas.
Aqueles momentos de desespero em que tudo nos foge.
Eu nem cheguei a pedir nenhum desejo.
O desejo era que me passasse uma estrela cadente.

Sunday, August 25, 2024

Sim

Quero dizer-te que sim.
(Quero!)
Afundar-me numa cama de penas contigo.
Tocar com a ponta dos dedos na mais
volumosa das nuvens.
Fazermos amor na areia.
Beber os gritos da borboleta.
Ver-te gritar como uma borboleta
que só desabrocha nas nuvens que eu
toco.
Eu quero isso tudo.
Mas quero, acima de tudo.
Dizer-te que sim.
O não está-me cosido nos lábios.
E tapou-me a pele com uma gigantesca
tatuagem, que me faz mais disforme
que a cara mais feia de Paris.
E por isso eu não quero as borboletas,
Nem o teu corpo suado a esporrar-se.
Eu quero é ser o Sim.

Monday, August 05, 2024

Porta

Entrei na sala com vergonha.
É que eu não tinha o coração estropiado
por nenhum desastre.
Ninguém tinha morrido, pelo menos
os caixões continuavam vazios. Eu olhava
para trás e não via o meu corpo mutilado
por ninguém, pelo menos não havia marcas de
dentes.
Eu só não conseguia dormir. E quando dormia,
acordavam-me os pesadelos.
Tantas e tantas perguntas e eu desacreditada,
nenhuma resposta a não ser a óbvia:
a vida são as pequenas coisas.
E eu era uma má aluna, que não decorava
a lição.
Nunca duvidei que era uma péssima aluna
disto que é viver.
Mas eu sabia que tinha sido a brisa do vento que me impediu
de saltar para a linha do comboio.
A minha estúpida forma de ver beleza em sacos de
plástico é que me levou viva àquela sala.
Um dia, cheguei mais cedo e bati à porta.
Lá dentro um rapaz sentava-se na cadeira virada
de costas para a porta. Aquela era a nossa cadeira.
Ela sentava-se na outra, a ouvi-lo.
Imediatamente percebi o meu problema.
É que eu sentava-me sempre na cadeira
de onde pudesse ver a porta.