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Wednesday, October 06, 2010

La Valse des Monstres

Lembro-me do inferno horrível que fora aquele Verão com calor e falta de esperança, gritos e lágrimas que não saiam da pele, mesmo depois de muitos banhos. Fora uma época tão triste, que nem as janelas nem o vento nem os sonhos em que via a Torre Eiffel da janela do meu quarto me faziam acreditar que algum dia a minha sorte mudaria.


E foi a primeira vez que a vida brincou comigo, porque eu nem sequer gostava especialmente de Paris, mas a minha ânsia em deixar tudo isto fazia-me sonhar constantemente com o ícon de França recortado no meu horizonte. E eu sentia o coração a bater descontrolado, como se de repente eu me apercebesse que afinal Paris estava perto, que eu estava a vê-lo. Bastava-me correr, bastava-me andar, estava tão perto, quase lhe conseguia tocar.

Depois acordava e esta sensação de felicidade custava a despegar-se dos poros. Parecia-me tudo possível, e só quando apanhava o comboio e estava limitada a um horário e ao dinheiro da minha carteira, só aí é que começava a acordar do meu sonho. Porque Paris estava perto, eu é que estava longe.

E foi a segunda vez que a vida brincou comigo: no fim desse Verão foi a minha janela que se aproximou de Paris, quando me apaixonei por um francês trazido a esta cidade deslavada que era Lisboa.

Tentei fugir várias vezes, mas uma noite não resisti mais, e fechei os olhos enquanto me equilibrava numa curta vara sobre o precipício em redor duma total escuridão. Nessa noite, lembro que alguém me fez companhia, quando vim cá fora apanhar ar e focar um pouco o Mundo. Mas tudo aquilo era demais para mim, como se vomitasse os excessos de um corpo que permanecera demasiado tempo estático. E lembro-me que lhe confessei “Isto vai ser a minha desgraça”. Era tudo tão explícito, que aquela sombra riu-se nervosamente e pôs-me a mão no ombro. E a confissão dela foi essa, naquele silêncio estava a sua profunda vontade de se apaixonar como eu.

Nessa última noite, rodei por Lisboa como um fantasma que já cá não está. As sombras do Bairro Alto e de Santos, gritantes e espampanantes abraçavam-me e tocavam-me, como se lhes pudesse passar por osmose um bocado daquela minha paixão que se via em todo o lado. De repente, o Mundo inteiro queria estar apaixonado como eu. De repente toda a gente queria encontrar Paris como eu encontrara.

Mas a minha confissão àquela sombra permanecia como um presságio sob a forma de música. E aquela Valsa começou a tocar para mim nas ruas de Lisboa e sobrepôs-se ao êxtase de paixão que todos cobiçavam. Mas aquela Valsa, a Valsa dos Monstros só eu a ouvia.

E estava fora do sítio, desenquadrada nesta Lisboa deslavada. Como as marcas do amor que eu ia deixando a caminho de Belém.

E tudo correu mal, como a verdade que o meu corpo vomitara àquela sombra. Lisboa parecia enxotar-me, fechou-me a torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos, avariou-me os eléctricos e impediu-me de comer pastéis.

E nesse momento só eu e Lisboa sabíamos que tudo tinha acabado antes de começar.

A terceira vez que vida brincou comigo, foi quando finalmente coloquei os pés na Torre Eiffel e ela devagar olhou para mim, baixou-se e acarinhou-me o cabelo. Via a desilusão no seu esqueleto férreo quando a Valsa dos Monstros voltou a tocar, e eu já sabia que era para mim. E assim, quando cheguei a Paris, cresceu em mim o sonho de ver Lisboa na minha janela.

Quando te conheci e me disseste que gostavas muito de Paris, pensei que a vida se estava a rir de mim mais uma vez. Nessa altura já Lisboa e eu não nos podíamos ver, já éramos demasiado confidentes para nos ouvirmos, ainda que a Valsa nunca mais tivesse tocado. Como seria possível? Seria que a maldita França nunca me deixaria em paz? Não, eu não queria voltar e não queria acender o televisor e ver de novo uma história francesa que não me cabia no corpo desajeitado de Amélie desempregada, que ficou de parte por não ter jeito suficiente para albergar um papel com o qual nasceu.

E sobretudo, eu não queria ouvir aquela Valsa outra vez.

Mas Paris voltava na tua boca. Uma e outra vez. Às vezes eu dizia-te que sim, outras dizia-te que não. E tu esquecias e voltavas a lembrar. A vida não parava de brincar comigo e eu não parava de me indignar com ela.

A Valsa voltou a tocar contigo em Lisboa em noites em que te amava demais e sentia que estavas longe de mim, que pensavas em alguém que não era eu. Á tua janela, a valsa dos Monstros lembrava-me quem eu era e escarnecia cada pedaço horroroso da minha imagem. E Paris vinha no vento e parava na tua janela. E o meu amor desajeitado encolhia-se sobre si mesmo. E eu tapava os ouvidos.

Que Paris se fodesse.

Mas tu abraçavas-me e dizias-me que eram só fantasmas o que eu via naquela janela. Que me amavas demasiado. E tinhas a magia na voz ao baixar o volume da Valsa enquanto eu adormecia no silêncio dos teus braços.

Mas cada vez fui sendo mais desajeitada no meu papel de Amélie e cada vez afastava mais aquele filme da memória da minha carreira. E dei por mim de cigarro descolado do coração. De janela limpa e de amor remendado.

E um dia, sem que eu pudesse prever, a Valsa voltou a tocar. Preencheu a noite e fez eco nos azulejos. Eu acordei surpreendida e percebi que não era para mim que ela tocava, era para ti. E senti-me um monstro.



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