Translate

Thursday, December 15, 2011

Devolva-me

Foi ás cinco e cinco da tarde que voltei a entrar no meu apartamento. A tarde era uma chuva miúda, a escorrer por entre um dedilhar triste de guitarra.
Ele tinha ficado preso à cadeira do café onde nos costumávamos encontrar há alguns meses atrás, quando estávamos terrivelmente apaixonados um pelo outro, mas nenhum de nós o dizia. Hoje, pouco disséramos, e faláramos tanto.
Sete dias atrás, ele procurara-me, e sem qualquer discurso prévio, disse que me tinha traído. Os seus olhos encheram-se de lágrimas que nunca chegaram a cair. A tarde era de chuva miúda como a de hoje, mas a guitarra ainda não tocava. Felizmente, eu estava sentada, se não teria sido eu a cair e eventualmente salvo algumas lágrimas que se espalhassem pelo chão.
Fora uma frase curta e dita com pouca respiração, o libertar de uma bolha que lhe começara a crescer e com a qual, ele afinal, não sabia viver.
As minhas bolhas, dentro dos meus pulmões ficaram subitamente caladas. Uma névoa de vazio invadiu a minha respiração, como se a cada segundo procurasse uma “não pergunta” para ouvir uma “não reposta”. Senti, como um fio que se corta, a nossa intimidade a fugir-me das mãos.
Sempre pensei que se isto acontecesse um dia, eu poderia finalmente atirar-lhe um vaso, como nos filmes. Mas percebi que isso acontece a quem tem força para pegar no vaso e eu não tinha. Seria preciso talvez actuar aquela cena muitas vezes, para sentir a adrenalina de lhe esmagar a cabeça numa porcelana, e eu era só uma amadora a subir ao palco pela primeira vez.
Ele perguntou-me se eu o podia perdoar. Disse-o sentidamente, sem referir pormenores e acrescentou que continuaria a amar-me, mesmo que eu não o perdoasse.
Mas nessa altura a guitarra começou a fazer-se ouvir e senti ao longe uma janela aberta, de onde se escapava um pássaro. Pedi licença, afastei os vasos delicadamente do caminho e fui embora, pedindo exageradamente desculpa a todas as pessoas que encontrava no caminho.

Quando fiquei sozinha, abateu-se uma tristeza sobre mim e mais tarde nessa noite uma necessidade de vingança. Sempre pensei durante o tempo em que estivéramos juntos, que não tínhamos uma relação – estávamos simplesmente apaixonados. Pela primeira vez perguntei-me quando é aquilo tinha acontecido, quando e com quem.
No dia seguinte quando uma amiga passou pelo meu apartamento e me perguntou se estava tudo bem, menti-lhe envergonhada com o facto de ter estado apaixonada tão profundamente com alguém que me traíra.
Não fazia diferença se ela sabia, mas fazia diferença que fosse eu quem lhe dissesse. Era como se eu fosse uma mulher muçulmana, a pedir desculpa por ter sido violada.
Talvez ela soubesse, pensei eu quando ela se foi embora. Se calhar só tinha vindo para me consolar.
Todo o apartamento me falava dele, toda a minha vida me falava dele. Agora sem ele, teria que redecorar tudo, desde os objectos que estavam em cima da estante à minha pele. Que faria eu com as minhas memórias falsas? Oh, mas não são falsas, era o que ele me diria, que fui tudo um erro. Um terrível engano do momento, uma tentação espontânea, e que afinal somos todos humanos. Mas era a mim que me doía continuamente e de repente pus-me a relembrar qualquer oportunidade que tivera de o trair. E dei por mim a lamentá-la. Devia ser mais humana, pensei eu. Devia cometer mais erros e amar mais.
Hoje no café fora isso exactamente que ele me dissera. Que me contara para que pudesse confiar nele uma outra vez. E que esperava que eu o conseguisse perdoar, porque ele não imaginava a vida sem mim. E antes que ele pudesse terminar a frase em que me dizia que eu era bem melhor que a rapariga com quem tinha estado, respondi-lhe que eu não sabia o que era perdoar. Ele olhou-me confuso.
A não ser que haja perdão por esta vergonha que sinto, terminei eu.
Foi um erro, disse-me ele novamente, quase desesperado. Eu sei, disse-lhe sinceramente. E tu és humano, como todos. Ele anuiu, com as lágrimas finalmente expostas.
Eu também quero ser, disse-lhe. Ele olhou-me espantado.
Por isso, hoje, não compreendo, só sinto.  



No comments:

Popular Posts