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Sunday, October 07, 2012

Estar apaixonado é ver o Sol nascer dos dois lados


« Estar apaixonado é ver o Sol nascer dos dois lados »
 provérbio finlandês

Saiu de casa sem vontade, atravessou a rua e tirou a chave para desbloquear a bicicleta estacionada ali durante toda a noite. Os pedais moveram-se acusando um som agudo e preguiçoso e debaixo dum nevoeiro espesso ele desapareceu ao fundo da rua, engolido pela madrugada fantasma.
Era normal haver pouco sol, especialmente durante o Inverno em que a neve cobria timidamente os beirais das casas e aquele nevoeiro sobrevoava toda a cidade como um vigilante. Mas nunca isso o impedia de se levantar e  viver a sua vida rotineira, tão bem quanto sabia.
Naquele dia porém, algo mudou. Em cima da sua secretaria estava o correio do dia. Quando se preparava para abrir as cartas, ouviu pela primeira vez a voz dela. Uma gargalhada tímida e límpida ecoou na sala. Levantou-se e foi até à porta, espreitou e viu uma mulher de cabelos negros e olhos de amêndoa. “É bonita”, pensou imediatamente. Mas encostou a porta e voltou a sentar-se na sua secretrária de aprendiz. O coração batia sem que soubesse porquê. Precisava de férias, pensou. Ao almoço no entanto, apresentaram-lhe Maria, a argentina que ficaria a trabalhar com eles. Ele acenou, num cumprimento formal e retraído: não só ela era linda como era mais velha.

Bert tinha vinte e três anos e acabara de começar. No inicio ficara entusiasmado com a sua independência mas rapidamente tudo aquilo se transformara num fardo que era tão dificil de suportar quanto era de denunciar. A sua namorada mais recente parecia querer ficar com ele para sempre e os preceitos evocavam que começassem a pensar na casa que queriam. E se a queriam tinham que a construir. E para a construir precisavam do dinheiro de Bert e da sua estabilidade.
Ás vezes quando o Sol espreitava, ele ainda gostava de pegar na sua bicicleta e pedalar ao longo do canal, onde não havia ninguém e ai pensava que era bem feliz assim. Mas outras vezes, no escuro do seu quarto, com os olhos fechados julgava ver rasgos momentaneos de cor. Depois adormecia e esquecia tudo no dia seguinte. Havia porém, algo que Bert nunca esquecia, pois nascera com a rara doença de não ter olfacto. A sua mãe cansou-se durante a infância de lhe trazer flores e passa-las pelo seu nariz. Enumerava os nomes e dizia-lhe para fechar os olhos e inspirar com força. Com os anos, Bert como um mau aluno que se remedeia dizia a medo parecer sentir qualquer coisa. Mas era inútil, ele não fazia ideia do que procurava e ninguém lhe conseguia descrever o que era esse cheiro que lhe faltava.
Naquele dia ao almoço, ele imaginou que o olfacto fosse parecido com Maria.

Dias depois quando saia bem tarde do trabalho, Bert viu-a por entre os troncos magros das árvores. Estava já escuro mas os cabelos pretos revoltos denunciavam-na. “Maria?” perguntou ele a medo. A vegetação mexeu-se e ouviu-se um choro grave. Bert tirou as mãos dos bolsos e caminhou em direção das árvores tentando não fazer barulho. Ela estava sentada no chão, em cima da musgo húmido, sem casaco e cobria a cara com as mãos, dobrada sobre os joelhos. Bert baixou-se e pôs-lhe a mão no ombro, ficando imediatamente gelado. “Vamos embora” disse-lhe determinado. Ajudou-a a levantar-se e caminhou até à paragem de autocarro mais próxima com a mão no seu ombro. Nessa noite, ligou à sua namorada e mentiu-lhe pela primeira vez. Depois levou Maria para o seu modesto apartamento, deixou-a tomar um banho quente enquanto preparava um chá forte.
Enrolados em mantas falaram até de manhã. Lá fora nevava e Maria falava-lhe do homem que a deixara por ela ter saído da Argentina. Bert ouvia deslumbrado a paixão que lhe escorria na pele. A maneira como ela falava, os seus gestos e o calor dos lábios tudo tinha movimento e intenção. Os seus olhos enchiam a casa de expressão e era viciante, como um novo sentido que se descobre.
Quando o sol ia alto Maria adormeceu. A sua face estava rosada da exaltação e queimada do frio. Ele não tinha sono, nem dormir àquela hora lhe fazia sentido, mas como num pequeno sonho, também ele se deitou no soalho enrolado naquelas mantas e fechou os olhos. De tarde Maria acordou e voltou para o seu apartamento do outro lado da cidade.E quando finalmente o cansaço se começava a apoderar dele, ouviu o toque da porta. Era a sua namorada e a sua antiga vida.
Nas semanas seguintes Bert conheceu o cansaço extremo de uma vida dupla. Sempre que podia estava com Maria, passeavam e conversavam, no pouco resto de tempo ele fingia que nada se passava com a sua namorada. Ás vezes à noite pensava para si de olhos fechados “tenho de parar com isto” mas depois adormecia e esquecia tudo no dia seguinte. E quanto mais Maria dependia dele, mais ele gostava dela.  
Falavam frequentemente do Amor. Bert queria entender e sentia que ironicamente, algo lhe faltava. “Estar apaixonado é como andar aos solavancos numa montanha russa. Sentir o estômago perto dos pés e o coração no topo do mundo. Saberes que vais cair na vertigem mais profunda e abrires os braços ao vento. E aquele saber profundo, semi-consciente de que vale a pena estar vivo” disse ela. Ele cruzava os braços e e olhava de forma franzida o horizonte. Como ele desejava afundar-se naquela loucura, se ao menos ele soubesse como fazê-lo. “Não tens medo de cair dessa montanha?” perguntava-lhe. E ela dizia “Tenho é de medo de nunca chegar a andar”.
Quando o tempo passou, Maria parecia estar restabelecida daquele longínquo dia em que ele a encontrara caída no chão gelado. As memórias do outro homem desvaneciam se lentamente, pela mão implacável do tempo e Bert ganhara um lugar especial na corrida que mais desejara. Até que um dia, sem nada que o pudesse esperar, Maria recebeu uma carta da Argentina. Perturbada ela chamara-o até sua casa e calcava ansiosa o soalho de um lado para o outro. Mal chegou, Bert viu que ela se  escapava de si como areia entre os dedos. Pegou na carta sabendo de antemão o que iria encontrar e os olhos passaram por cima das letras dum espanhol que em tempos aprendera.
Inspirou com força de olhos fechados e pegou-lhe na mão. “Achas que devo voltar?” perguntou ela. “Sim, a corrida ainda não acabou para ti”. E assim que o sangue lhe começou a correr nas veias, abriu os olhos e espantado sentiu-lhe o cheiro.  

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