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Sunday, September 11, 2011

O Passado é inútil como um trapo

O Beijo. Acordou silenciosamente, tremendo. Era tão reprimido quanto isso. O soalho de madeira estava impecavelmente liso, espalmado pelo luar que inundava o quarto inteiro. Ela dormia na cama de dossel solitária encostada ás almofadas frescas de tecido branco e fresco. Como a sua pele, a sua vida e a sua casa.

Sem fazer barulho, habituado como um gato a caminhar de veludo, desceu as escadas, passou pelo salão e abriu a porta do jardim. Dali, via-se a cidade longínqua e luminosa atravessada por um rio de planície verde.

O jardim não tinha cadeiras e por isso ele caminhou pela sua relva cortada até à pequena vedação que o separava do mundo. Quando lá chegou, ligou-me.

“Sonhei com ela outra vez”. Eram três da manhã, mas como sempre eu não conseguia dormir. Quando o telefone tocou eu já sabia que era ele. De tempos a tempos acontecia-lhe. E de forma casual, respondi-lhe o que sempre lhe dizia: “Amanhã tens de procurá-la.” Como se eu soubesse o remédio que ele precisava. Como se ele tivesse uma doença crónica, que nunca se curava mas era atenuada sempre da mesma maneira.

Houve um silêncio leve na chamada, enquanto eu imaginava o cigarro que ele puxara do bolso, apesar de saber que ele não fumava, assim como o sentia a vaguear à deriva pelo jardim, apesar de saber que estava encostado à vedação e olhava hipnotizado os pontinhos vermelhos e verdes do horizonte.
“ E se ela não é como eu me lembro? E se ela me rejeita?”

Já perdera a conta das vezes que esta conversa se instalara entre nós. E sobretudo, eu sabia o que era esse inútil trapo que é o passado. Ele injectava-se com falta de memória; eu sofria.
“Procura-a amanhã. Tem que ser”. E desliguei.


No dia seguinte, quando acordou, atirou com os lençóis para trás, espreguiçou-se longamente deixando o corpo provar todo o seu entusiasmo. O sol fraco escapava pela fresta da janela de madeira iluminando-lhe as pupilas sem o magoar. Ao pequeno-almoço, ligou-me de novo “Vou procurá-la agora. Á livraria onde ela trabalhava”. Parecia-me tão feliz, que quando desliguei a chamada não pude evitar sentir um golpe profundo de dentro para fora. As minhas entranhas esfaqueavam-me e o resultado era um sangue coagulado ao contrário.

Enquanto o imaginava a escolher a roupa e a acalmar as borboletas que lhe comiam o estômago, decidi ir dar um passeio de bicicleta, como fazia quando era pequena. Meia hora depois, com os braços abertos e o vento a insuflar a minha camisola tinha revivido a história dele – outra vez. Aquela rapariga perfeita, que por entre tantas que ele tinha conhecido, permanecera imaculável nos seus quinze anos. Ele contara-me as horas que passaram no sótão da casa dela, isolados do mundo pelos telhados baixos e a luz castanha filtrada pelas clarabóias mal lavadas. Nesse tempo, o estômago dele estava sempre revirado, acordava a meio da noite estupidamente feliz e apavorado ao mesmo tempo. Lembra-se, disse-me ele, de ter pena de morrer. Ás vezes ficavam deitados no sótão, estendidos em tapetes velhos. Ele via-a por entre as bolhas de sabão enquanto lá fora chovia e o perfume inundava o ar. Falavam das perguntas difíceis e desse futuro que tardava a esperar por eles.
Por isso ela cheirava a chuva e o futuro cheirava a ela.

Com as botas enlameadas e as bochechas vermelhas do calor, desci da bicicleta e sentei-me à beira do ribeiro. Ameaçava chover e pensei que talvez desta vez ele estivesse com ela, como nos filmes.
Mas nem cinco minutos passados, e ouvi passos atrás de mim. Vinha ao meu encontro, ao sítio onde nos encontrávamos sempre. Sentou-se calmo e disse-me o mesmo de sempre “Ela já não se lembra de mim”.

Abracei-o e depois ficamos os dois a ver a água fluir enquanto as nuvens se encavalitavam e tornavam o ar irrespirável.
Ele precisava de sentir o estômago ás voltas de vez em quando, para sentir que estava vivo. Eu precisava de o ver fazer isso, para saber que não valia a pena.
   

2 comments:

WinGs said...

honra verdadeiramente o intuito da frase este texto. triste e sem movimento, a necessidade da ilusão para tornar a vida mais cheia de um vazio que tem um aroma mais agradavel

=)

Ricardo said...

Quando passamos tempo sonhando e planeando na intimidade com alguém, acabamos por projectar a beleza desses sonhos na pessoa. Sobretudo quando somos novos e ainda tudo para a frente é indefinido. Como os sonhos não se cumpriram e a pessoa provavelmente também já não existe na nossa vida, colamos as duas memórias. A pessoa torna-se no símbolo do futuro que não foi o nosso.

É impossível ver o passado pelo que ele é. É inútil sentir algum carinho por ele, desejá-lo, senti-lo, procurá-lo, ou sequer falar dele.

Adorei o texto. É demasiado verdadeiro. E move-se com a mesma fluidez do passado na nossa imaginação - as imagens são reais mas parecem-se mais com memórias difusas. Lindo.

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