Há uns anos vivi durante uns largos meses numa cidade do Sul. Quente, quente como no deserto. No Verão, a cidade estava vazia. As pedras brancas intactas ecoavam um silêncio que não se propagava e que ali ficava preso. O calor era demasiado insuportável para se viver, por isso o dia era uma espécie de Inferno, onde em fila, os mortos-vivos esperavam. Finalmente quando chegava a madrugada, lembro-me de se levantar uma brisa. Um pequeno arrepio pela pele, o céu ainda escuro mas já claro, dava uma vontade de viver tudo, sair pela janela e voar. Cantar, cantar tudo o que ia cá dentro, amar sem barreiras. Beber-te até acabares. Mas depois o Sol abria-se e esmagava-nos.
Foi num desses Verões que a conheci. A face calma, o sorriso fácil.
Partilhamos trabalho, um projeto que se concretizaria no fim do Outono. Para
fugir ao calor, eu chegava sempre cedo. Ninguém lá estava, a não ser ela.
Sentada numa mesa da esplanada velha. Bebia um café, lia um livro. Ninguém lá
estava a não ser eu. Havia qualquer coisa neste quadro que me apertava o
coração, mas eu não sabia o quê. Falava com ela, todos os dias partilhávamos o
café. A face sempre calma, o sorriso sempre fácil. A certa altura percebi que
ela contava com a minha presença. “Ontem não vieste beber café”. Outras vezes
perguntava-me se vivia ali sozinha e o que fazia ao tempo. “Sim. Vivo sozinha.
Escrevo, escrevo todas as noites num bar ao pé de minha casa”. Um dia sugeriu
que fizéssemos companhia uma à outra. Percebi que já há muito tempo pensava
nisso. Olhava para mim e via uma solidão semelhante à sua. Mas eu, eu não nunca
aprendi a reagir bem às pessoas que me procuravam. Um vulcão acendeu-se
instantaneamente no meu coração e um frenesim de fuga se apoderou de mim. Como
sempre. A ideia de alguém permanente e colado nas minhas pegadas deixava-me em
pânico. O Outono chegou, o projeto cumpriu-se. Depois, um dia deixei
repentinamente a cidade e voltei a Lisboa. A vida tinha dado uma grande volta e
não tive tempo de me despedir. Nesse Inverno, pensei muitas vezes nela. Será
que ainda lá estava na esplanada a beber café? Será que tinha encontrado outra
companhia? “Por certo que sim”, pensava eu. “Haverá mais gente”, pensava eu.
Mas haveria mesmo? “Tenho de lhe escrever”. Mas não escrevi.
Entretanto chegou a Primavera. Nova vida floria, e também em mim nova vida
floriu. Quando me preparei para receber esta nova mudança, abri o computador e
li a mensagem que trazia a notícia da sua morte. Tinha tirado a sua própria
vida, quando saltou da janela propositadamente. Nunca saberei se a minha
companhia lhe teria prolongado a vida ou se todo este xadrez só aconteceu na
minha cabeça perturbada por tantas vezes querer saltar da janela. É uma culpa
que carregarei para sempre. Quando eu morrer e a encontrar, posso finalmente
pedir-lhe desculpa e então saltaremos as duas juntas.