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Wednesday, February 04, 2009

A história da cinderela alternativa - parte IV

E assim a Cinderela chegou ao seu concerto, numa mota espectacular e com a sua roupa e botas preferidas. Quando estacionou a mota, ouvia os gritos das pessoas, estava já tudo no recinto, ela apenas esperava cá fora. Com cuidado, para que o tempo assim durasse mais, foi andando devagar. A entrada já estava encerrada e por isso deu a volta por trás da vedação.
Meio perdida por entre grades não sabia que havia olhos no escuro que a vigiavam. Silenciosamente como gatos. Até que, por fim o guitarrista encontrou-a. Ela tinha exactamente aquele ar inocente de quem vive um sonho. Tinha na pele e nos olhos profundos a espera longa. O condensar de um momento que se esvai, como um fósforo que arde rápido.
Dirigiu-se a ela e a conversa fez-se no tom de música. Naquelas frequências que ela conhecia. Afinal até comunicava bem. E nem sequer precisava falar.
Ficaram assim. A ouvir música. O céu até estava estrelado, ou as poucas estrelas que se viam enchiam por completo a noite estática.
A música foi caindo na alma de Cinderela, acomodando-se como o orvalho na relva. Aninhou-se e adormeceu.
Mas ás três da manhã, Cinderela começou a perder as suas calças rasgadas. O guitarrista (ou a música) encostara-se ao seu ombro e permanecera assim, naquela dimensão entre o sonho e a realidade onde as figuras são farrapos de uma incerteza apaixonante. Não se apercebera da mudança de Cinderela.
Estavam ambos descalços, na noite quente e estirados na manta seca de caruma do pinhal aonde o concerto tivera lugar. Quando Cinderela se levantou de repente o guitarrista assustou-se e olhou-a atravessadamente. Ela baixou-se para agarrar as botas e fugir, porque sabia que se olhasse de novo arriscaria desobedecer ao fantasma que tão gentilmente lhe dera aquele pedaço de vida.
Nessa breve atrapalhação em que o guitarrista se manteve hipnótico, ela deixou cair uma das botas que ficou irremediavelmente para trás. Mas ela não se virou e ele não se mexeu.
Quando chegou a casa, tomou um duche quente, entrou na cama e adormeceu.
E assim os dias passaram. E continuaram a passar.
No princípio a Cinderela esperava que o guitarrista aparecesse, que de repente a música invadisse a sua vida. Mas depois, com o passar lento dos dias e os lentos minutos do seu trabalho e da sua vida com Brisela e Anastácia, Cinderela começou a desejar num ter encontrado o fantasma no cemitério. Nunca ter ido ao concerto. Nunca ter conhecido o guitarrista.
Até que um dia, Cinderela saiu do seu trabalho e no caminho monótono para casa, onde se resguardava, viu-o. Estava numa esplanada com a sua guitarra pousada na cadeira a apanhar uns curtos e magros raios de sol.
Cinderela suspirou longamente, como um marinheiro que ao fim de meses vê terra. Mas quando passou por ele, ele olhou-a de forma banal. Cinderela esquecera-se que estava vestida da sua forma e não parecia nada com a mesma rapariga que fora ao concerto. Isso, ou o esquecimento nunca soubera. Mas o guitarrista não a conheceu. Nem a música que emanava dos seus poros a identificou. Talvez ele se cansara de esperar pela rapariga da bota perdida.
Talvez já não houvesse música e estrelas. Ou aquele encanto fizesse parte do acordo que se selara no cemitério e aí tivesse morrido, quando Cinderela não olhou para trás.
Porque agora ela estava intrinsecamente no seu mundo e não conseguia sair dele.
Voltou a casa e dormiu definitivamente.
Fora um sonho. Ela sempre soubera. Nem de outra forma aquilo tudo podia ter acontecido.

FIM



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