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Friday, September 23, 2011

True to His Own Spirit

Estas ocasiões sempre me deixaram nervosa. Uma vez mais, de janela aberta, estava eu a olhar o espelho e através dele o vestido que repousava na minha cama, impecável. Através do espelho, até parecia bonito.
Era em tudo, um vestido bonito, muito delgado e de um azul-marinho escuro. As linhas eram direitas e subtis, cheias de uma delicadeza marcante. Era em tudo, um vestido bonito.
Exceptuando que não era o meu.

Adiei o tempo, fumando um cigarro à janela de costas para o espelho. O que eu queria mesmo era escapar àquele casamento. Apetecia-me pegar no vestido e ir com ele para a praia, onde ele era apenas bonito, e eu era apenas uma pessoa.
Lá em baixo na sala, estavam à minha espera – eu já o sabia – os elogios e os sorrisos de manteiga, prontos a integrar-me num ambiente fácil e volátil.

E logo eu que não acreditava em elogios nem tão pouco em Amor. E logo eu, que não acreditava em nada a não ser em mim própria.

O meu irmão apareceu à porta do quarto e disse –me: “Não tornes as coisas sempre difíceis. É só um vestido e até te fica bem. Veste-o e vem divertir-te connosco”. Ele desapareceu antes que eu pudesse responder. Até porque ele sabia a resposta.

Tirei um outro cigarro, fechei a porta com algum estrondo e senti uma irritação chegar-se às minhas bochechas inflamadas. Atirei com o vestido ao chão e decidi que não iria a casamento algum, aturar crianças de choro fácil e adultos prontos a beberem para esquecerem os seus próprios casamentos. A realidade era tão transparente que a ideia de por um vestido bonito para tapar tudo aquilo me pareceu insuportável de mais.

A realidade era tão feia como as pessoas e os sítios. Atravessei a casa sem ninguém dar por mim e sai pela porta do fundo. Caminhei até ao mar, e por ali fiquei a ver as ondas e ouvir o vento zumbir-me aos ouvidos que estava sozinha.

Ao ondular nas dunas frias de fim de tarde completamente à deriva e com um peso morto no lugar onde antes costumava estar o meu coração, dei-me conta que a solidão estava mais comigo do que eu própria. Como um relógio cujo tic-tac era audível até quando eu dormia.

Reparei por isso numa rapariga mais velha que sentada num estrado de madeira lia um livro, apesar do vento irregular que lhe levantava as páginas. Quando me aproximei, reparei que ela não era tão nova quanto me parecera ao longe. Estendeu-me um cigarro e disse-me “ Que estás aqui a fazer? Não devias estar a aproveitar este fim de noite?” Usualmente, esta teria sido a frase que me faria deixar a conversa imediatamente, mas desta vez sentei-me e disse-lhe “ Estou a aproveitá-la”. Ela forçou um sorriso que nada tinha de elogioso. “Parece-me que estás mais a desperdiçar as oportunidades da vida. Que esperas encontrar aqui nesta praia deserta?”. As ondas, o som o mar, esta pequena liberdade de ser tudo – pensei eu. “ A minha solidão” respondi-lhe envergonhada.
Ela fechou o livro meio impaciente e olhou-me de alto a baixo, num misto de compaixão e fúria que nunca tinha sentido antes. “As pessoas não estão aqui nesta praia. A vida não está aqui, está lá fora. As vidas dos livros são para os velhos”.   Senti um nó profundo na minha garganta e pela primeira vez em anos achei que as lágrimas me iam saltar dos olhos. Fiz um esforço hercúleo para que isso não acontecesse e a minha garganta continuou silenciosa. Sentia que tudo aquilo era demais para mim como um cruzamento demasiado caótico onde eu era forçada a escolher um caminho ou a ser pisada pelos que me seguiam de perto. Quando me levantei, estava em mim um desespero tão grande que a ideia de o afogar naquelas ondas me pareceu verdadeiramente plausível.

Quando cheguei a casa, já não estava lá ninguém. Devagar subi as escadas, vesti o vestido azul-marinho, maquilhei-me e juntei-me à festa do casamento. O meu irmão guardara-me um lugar na mesa do jantar e quando chegamos à sobremesa era como se eu estivesse lá estado desde sempre. As bebidas iam e vinham, a música barata fazia-me trautear o pé e considerei até ir dançar um pouco. Afinal eu até era capaz de me enganar, e o meu vestido enganava muito bem. Quando o terceiro rapaz me convidou para dançar, eu dirigi-me à casa de banho, e olhei-me longamente ao espelho: o vestido ficava-me bem. O rapaz esperava-me no fim das escadas e eu disse-lhe “Podemos ir”. Ele voltou-se espantado e reparei que não o era o mesmo que me tinha convidado para dançar. Era incrivelmente bonito e naquele pequeno gelo em que me quedei por os ter confundido reparei que ele estava simplesmente vestido com umas calças pretas e uma camisa que esvoaçava. Timidamente disse-me “não gosto de dançar, desculpa”.

“Confundi-te com outra pessoa, peço desculpa”. A minha pose tinha desaparecido e senti-me patética naquele vestido que me afastava de mim. O que mais me custou foi o olhar vago que ele me lançou. E como eu conhecia aquele olhar, era o meu olhar. Não sabendo bem como, eu tinha voado para o corpo daquele rapaz e ele olhava-me como um espelho. E quando ia tentar salvar-me daquele afogamento, o meu par voltou no seu fato impecável e no seu sorriso brilhante. Ofereceu-me o braço, apontando-me como um deles. Antes de me juntar a ele olhei o rapaz uma vez mais e disse-lhe “podes juntar-te a nós, vem lá para dentro”.

Mas ele já ia no caminho oposto e a última coisa que lhe ouvi foi “ Apetece-me antes ir ver a praia”.

Não voltei a falar com ele. A meio da noite, quando tudo aquilo era demasiado insuportável para mim, despedi-me e fui a pé para casa, descalça e nua de mim mesma. No caminho, senti o perfume das dunas e ondulei-me por ali uma vez mais. Sem surpresa, vi a silhueta dele, sentado na areia. A lua ia alta e iluminava de forma bela a rapariga que lhe fazia companhia, enroscada numa manta velha.


4 comments:

Ricardo said...

And that's why you are true to your own spirit. Adorei.

WinGs said...

isto lembrou-me de relance a cinderela da sophia de mello breyner.
gostei da cadência do pequeno conto =)

Alice in Wonderland said...

Sabes que lá no fundo, foi esse conto que me inspirou mesmo não tendo pensado nele conscientemente. Quando reli, contudo, apercebi-me que ele estava lá. Fico contente por ter transparecido isso ;)

WinGs said...

bastante!é quase uma actualização do conto, adaptado ao vazio inócuo dos dias de hoje. nota-se que a inspiração foi inconsciente :)

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