Era o primeiro dia de aulas da faculdade de Inês. O secundário estava
finalmente para trás e com ele longas
horas de desespero mudo entre colegas atarracados e professores petulantes,
obesos de uma banalidade que enjoava. No entanto, enquanto apanhava o metro
sentia ainda o passado como presente; um corpo ligado à maquina cujo obito
acabara de ser declarado. Todo aquele passado, embora maioritariamente vazio
era tudo o que conhecia. E sem ele a sua nova pessoa era uma tábua rasa à
espera de nova escrita.
Ao longo dos anos colecionara pessoas das diferentes escolas por onde
passara, sem nunca se relacionar profundamente com nenhuma. Gostava de
escrever, mas saiu do Jornal da Escola quando um dos professores não aceitou o
seu artigo sobre a efemeridade da Neve que caira nesse ano, numa cidade sempre
quente. Mais tarde, noutra escola o ensaio de Português sobre o seu escritor
favorito Oscar Wilde veio rejeitado
por estar escrito de forma arrogante. No último ano recusou-se a participar no
programa da escola de voluntariado a crianças com cancro. Todos os seus colegas
de classe o fizeram, apregoando as desgraças das vidas que viram desaparecer.
Lembro-me de ver Inês nesse ano, sentada ao fundo da sala do pavilhão onde a
apresentação teve lugar. Quando os seus colegas terminaram de falar, a
audiência chorava em peso sem se dar conta que não eram os clichés daquelas frases baratas mas a ideia da sua própria morte
que lhes molhava os olhos. Inês
limitava-se a ouvir e a observar passivamente e de vez em quando os seus olhos
pretos cor de azeitona afastavam-se. Nessa noite, talvez pela fragilidade da
vida que mais ninguém vira naquela sala, Inês confessou-me à saída da sala que
conhecia uma rapariga cuja mãe tinha apenas 6 meses de vida. “É tua amiga?”
perguntei-lhe eu, enquanto ela se sentava na beira do lago de pedra que era o
Mundo absoluto de três peixes vermelhos. Ela riu-se naquele seu jeito sempre
bem disposta: “Importa apenas o que estas pessoas não sabem quendo fazem
apresentações como estas”.
Inês adaptou-se à nova vida na faculdade em menos de uma semana. Um novo
mundo cheio de novas pessoas estremeceram as suas articulações e balançou-lhe
as perspectivas. Ao fim de algum tempo tinha um grupo de amigos com quem
estudava e ouvia música. Cada dia a vida lhe trazia uma nova surpresa e Inês
descobriu-se uma pessoa diferente capaz de apreciar pequenos doces da vida sem
se sentir mutilada. Pensava frequentemente que na antiga escola era um dos peixes
vermelhos presos num ridiculo lago de pedra, mas que o oceano era infinito.
Nunca vi Inês tão feliz como nesse tempo e talvez nunca mais a volte a ver.
Nestas noites ela escolhia a roupa que melhor lhe acentava sem uma ponta de
narcisismo. Ria de forma perfeitamente espontanea e agitava-se na sua pele uma
tranquilidade de quem encontrou o que procurava. Havia uma inocência nessas
noites que cheirava a alecrim. Lembro-me dessas noites porque essa inocência
que exalava dela me acalmou a mim também.
Durante esse tempo Inês estabeleceu uma relação silenciosa com um rapaz
tímido que se sentava à sua frente nas aulas de matemática. Os seus olhos
pretos perscutavam toda a intencionalidade das mãos grande e delicadas e do
corpo franzino preso numa roupa quadrada e impessoal. Quando lhe perguntei
porque é que ela gostava dele, disse-me que ele não a julgava. Na altura não
entendi a resposta. Mas agitei-me com a
estranheza de a ver estabelecer a relação mais profunda da sua breve
vida com alguém com quem não falava. Quando o semestre chegou ao fim eu sabia
que ela estava irremediavelmente apaixonada. Não era um amor físico e vadio e
tão pouco uma paixão platónica. Inês tinha finalmente conhecido os laços de uma
amizade profunda e sucumbira ao seu efeito mais radical. Mas a vida na sua lentidão e podridão ainda
não lhe tinha mostrado tudo. Com o passar do tempo a sua nova vida era agora
tudo o que conhecia. E um dia houve em que se apercebeu novamente da sua
estranheza entre os seus. As conversas perderam-se porque nunca evoluíram com
ela e aquele silêncio das aulas de matemática era cada vez mais reconfortante,
como a Neve que caíra e que ela imortalizara naquele pedaço de papel. E numa
tarde igual ás outras atendeu o telefone para que a rapariga de que me falara
meses antes, lhe dizer que a mãe tinha finalmente morrido. Os seus colegas riam
na esplanada enquanto ela recebia a notícia sem saber o que dizer. Quando
desligou, sentou-se à mesa e contou-lhes. As suas expressões vazias eram iguais às lagrimas ignorantes que nunca derramaram.
Depois de umas poucas palavras ocas voltaram às suas realidades de peixe
vermelho sem que nada mudasse nos seus pensamentos sequer por um segundo.
Só a vi semanas mais tarde. Disse-me que agora estudava sozinha, num outro
pavilhão. Quando lhe perguntei pelo rapaz limitou-se a encolher os ombros com
uma indiferença que me emocionou. Eu vi-o também algum tempo depois de Inês ter
endurecido. Sentado num banco de madeira resistia com dificuldade a uma
rapariga ruidosa que o rodeava e lhe tentava entrelaçar as mãos nas suas.
1 comment:
"O oposto da vida não é a morte, é a indiferença", R.Bach
=)
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