“Nao gosto disso. Nao gosto de vicios, fazem-me sentir descontrolado”. O
cafe inchava de barulhos, e o resto das pessoas sentadas na nossa mesa
gesticulavam como se comunicassem por mímica. As luzes avermelhadas
mostravam-me a sua cara ligeiramente zangada. Quando ele queria, sabia ser
desagrádavel como ninguém.
Ninguem reparou nesta conversa perpendicular, em como ele encostava as
pernas ás minhas por baixo da mesa, mas afastava os ombros de mim enquanto
brincava com a colher. Tudo nele aproximava e afastava.
E tudo aquilo porque lhe disse que de manhã nao conseguia trabalhar sem
primeiro beber um cafezinho a escaldar.
Poucos momentos foram tao decisivos como este. Encolhi os ombros e olhei lá para fora, para o frio azul, depois disse que ja era tarde e fui-me embora sem
me despedir de mais ninguém.
Aparentemente, eu tinha muitos vícios, mentir era só mais um.
Percorri as ruas com o frio a encher-me os vácuos que ele tinha a magia de
encontrar em mim. Apertava os braços um contra o outro; a tentativa vã de
esconder os buracos de bala do meu corpo franzino. Agora mais do que nunca,
sentia-me suja e mediocre. Ele inseria em mim a fraqueza de quem eu era, sempre
viciada em alguma coisa, quanto mais nao fosse em nada.
A minha casa na penumbra lembrava um recanto de armário recolhido do mundo.
Atrevi-me a espreitar a janela, por detras das cortinas: sim, o Mundo
continuava lá fora.
A postura dele nao me saía da cabeça, os seus olhos desaprovadores, a sua
aparente compaixão. Peguei na garrafa com uns restos de whisky e despejei-a na
minha garganta. E de repente percebi que o odeiava. Esgotei as outras garrafas que tinha em casa
e arrastei-me finalmente até a cama, com uma deliciosa sensação de tontura. “O
mundo é belo” pensei deslumbrada “ e aquele filho da puta não sabe o que é viver”.
Passado uns dias encontrei-o. Eu vinha a sair do metro e puxei dum cigarro
que pendurei nos lábios enquanto procurava o isqueiro sempre desaparecido,
quando ele passou por mim. “Merda” pensei instantaneamente. Era tarde demais
para tirar o cigarro da boca e por isso acendi-o enquanto lhe dizia boa tarde
com um sorriso demasiado aberto. Até a mim me espantou o quanto eu lhe queria
compensar os meus vícios.
A conversa nao durou muito, depois de umas curtas frases frias. Antes de se
ir embora ele comentou o facto de eu ter deixado a mesa dele demasiado cedo,
naquela noite. Perplexa, não fui a tempo de responder e ele desapareceu, sempre
no seu passo compassado com o da sociedade.
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