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Wednesday, June 26, 2024

Diabo

Sempre viveu em mim o desejo de ser o Diabo. E, no entanto, pernoita em mim a eterna chama de uma estrela bonita. Um fogo que arde e ilumina, mas nunca extravasa. Eu queria tanto ser a explosão nuclear que tudo arrasa, mas o meu corpo falava outra língua, e nesse estrangeiro em que se perde toda a tradução, só consegui atrair os físicos que gostam de astronomia. O que todos eles queriam era o Amor de uma aurora boreal, partilhar a cama com alguém que entende a beleza de um eclipse solar. O meu tempo todo para eles como a quarta dimensão que tudo completa.

O Diabo não sente nada disso. Sabe lá o que são buracos negros ou supernovas. O Diabo está lá para nos fazer descobrir as teorias que ainda não foram formuladas. Para nos rebentar um Big Bang nas mãos e nos abrir os olhos para frequências que nunca sintonizaríamos. O Diabo está lá para o orgasmo eletrificado pela certeza de que tudo já acabou antes de ter começado. E por isso ninguém vive com o Diabo. O Diabo vive-nos, de vez em quando. Já eu, estou lá para fazer um amor perdurar. Para trazer um equilíbrio perfeito na vida de quem encontrou o Diabo e continuou insatisfeito. E todos os que habitam o Diabo, depois de lhe sorverem o corpo e a adrenalina, acabam a desejar a luz de uma estrela que os guie.

Todos menos Eu. Eu, continuou a preferir o papel do Diabo. E por isso sou a única permanentemente insatisfeita.

Tuesday, June 25, 2024

Mas isso seria voltar para trás

Queimei tudo, soprei as cinzas e abracei o que virá. Os meus pés não sabem chorar estas pedras que os magoam. Estou toda partida, sinto os meus órgãos separados. Bates-me e eu não sinto nada, só olho para as manchas negras que me desenham os braços. Vejo os teus olhos azuis tão bonitos e não sei desejar-te. Não percebo o que fazer com as minhas pernas, e na minha cabeça vive um aquário vazio.  Se ao menos pudesse ouvir música ou ver as ondas do Mar. Mas isso seria voltar para trás e eu já queimei as minhas lágrimas.

Thursday, June 20, 2024

No surprises

Queres ver-me descontrolada, louca.
Queres foder o meu Eu primitivo.
Anseias que me mexa sem qualquer trilho de
pensamento.
Que te entregue o último pedaço de virgindade,
E mostre quem Eu sou, quando não sou Eu. 
 
Mas já em criança abria os presentes antes do Natal
chegar.
Não porque tivesse curiosidade. Mas porque gosto de viver
o orgasmo mais pristino sozinha.
E isso é quem Eu sou. Sou aquela que não gosta de
surpresas.

Tuesday, June 18, 2024

Absurdos e Impossíveis

Gostos de absurdos e de impossíveis. Gosto quando a Alice corre para se manter no mesmo sítio. Gosto dos hipercubos que só existem a quatro dimensões. Gosto de imaginar o princípio de Heisenberg com toda a certeza sobre os eletrões.

Gosto de pensar que seria possível amar-te e foder-te para toda a vida sem nunca viver contigo.


Friday, June 14, 2024

Devo-te

Devo-te o prefácio de um livro.
Sempre escrevi, para que um dia te pudesse dedicar os meus poemas.
Escrever “para a minha amiga A., para quem o Mundo foi mais do que um
Monstro. Foi Real”.
Mais ninguém merecia um prefácio do que tu.
E eu falhei em tudo o resto que te dei. E não escrevi o livro.
O tempo passa. Gastamo-nos nas esquinas, nos cigarros, nas fodas.
Gastamo-nos a ter razão e a beber para esquecer a puta da vida.
Nada disso interessa.
Nunca interessou.
Afinal, que farias tu com um prefácio?
A Realidade há muito que te comeu os olhos. 

Tuesday, June 11, 2024

A minha t-shirt dos Doors

Há muitos anos, ofereceram-me uma t-shirt dos Doors, preta e comprida demais para mim. Comecei a usá-la aos fins-de-semana. Depois, usava-a todos os dias. Quando começou a ficar gasta, passei a dormir com ela. Todos os dias. Quando estava suja, lavava e secava na lavandaria e ao fim do dia voltava a usá-la. Quando não ficava pronta, dormia nua. Fiquei com aquele cheiro de tecido, cheiro de plástico, cheiro de Light my fire na pele durante tantos anos que quando ela se começou a rasgar fui incapaz de a poupar.  Ao invés disso acelerei o seu consumo. Perto da morte, só queria dormir com ela mais uma vez. Um dia, os rasgões eram tão grandes que davam a volta por baixo do braço. Era desconfortável dormir assim, mas parte de mim já estava naquela t-shirt, quais marinheiros do Flying Dutchman, a transformarem-se lentamente no navio que os aprisiona. Só no dia em que ela deixou de ser uma t-shirt, é que deixei de a usar. Hoje, está dobrada, enterrada no meu roupeiro. Eu, devidamente enlutada. Parte de mim estava ali, parte de mim morreu ali. Gostava de dizer que me arrependo de ser assim. E às vezes gosto. Mas é mentira, porque nunca me arrependo.  

Friday, June 07, 2024

Não tenho por onde fugir

Adormeço de barriga para cima e acordo ao fim de uns minutos. Parece que passou muito tempo e que estive intermitente a passar por todos os meus pesadelos. Uma outra vida dormente e aterradora que acaba quando os meus olhos fixam o meu quarto e vêm uma mobília familiar que não reconheço. Mas na rua, toda a gente me parece conhecida, tenho a certeza de que já nos vimos pelo menos uma vez, fodemos dez. Volto a adormecer e a acordar passados cinco minutos. É um inferno que me acontece também quando estou acordada. E percebo que não há diferença entre uma vida e a outra.

Sempre tive enormes espaços negros. Séries inteiras de vivências que não sei onde estão. Posso ter sido uma puta ou a freira do convento. Gosto de preencher esses vazios com os meus sonhos. Mas os pesadelos chegam sempre primeiro e eu não tenho por onde fugir.

Tuesday, June 04, 2024

Gil

Um dia quando foste embora queimei tudo o que era teu. Fui á minha lista de emails e apaguei todas as mensagens. Limpei o teu nome do meu telemóvel, do chat no computador. Apaguei fotografias e rasguei os bilhetes que trocamos. Nessa altura nasceu-me a minha piromania. Acendia fósforos e via-os arder com uma paixão que até aí só tinha tido por ti. Muitas vezes me arrependi de te ter queimado assim, chorei amargamente com saudades. Gritei de raiva, atirei-me contra espelhos. Queimei as mãos no fogo que eu ateei. Que ódio profundo pela merda de pessoa que eu era e que te tinha mandado embora. Que merda de pessoa eu era por te ter queimado. Depois de tudo isso, só restava o calor da minha piromania. E só me lembrava do Gil do Triângulo Jota a deambular morto pelo Porto como um fantasma. As mãos cheias de fósforos queimados e o segredo Guardado no Coração.  Agora, tremem-me as mãos de prazer a pegar em fósforos. Amo este prazer da minha destruição. E não acredito que nada possa ir embora nem que eu me torne em algo que não seja esta merda de pessoa, se não pegar fogo à casa toda.