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Saturday, January 01, 2011

Retrospectiva

“Não penses demais – disse-me ele tanta vez”


Numero dois da rua. Estava à porta do prédio, em Hotel de Ville. Paris.
Íamos de mãos dadas pela rua, o tempo frio arrefecia os corações mais fracos e a neve espreitava por entre as nuvens, pronta a descer sobre nós. Quando de repente paramos à frente daquele prédio antigo, de arquitectura parisiense onde há algum tempo atrás eu passara uma noite fugaz.

Nessa noite, bebera demais naquele restaurante ao pé do Sena e viera ligeiramente entontecida para a frente da Câmara Municipal de Paris fumar um cigarro e estender a língua em beijos compridos. O tempo estava estranhamente quente, como eu era estranhamente ingénua. Entramos naquela casa, mesmo ali ao lado e antes de me afundar na cama de penas e nas almofadas de veludo da cama dele, lembro-me que espreitei pela janela e vi um dos campanários da Notre Damme. Nessa altura não me apercebi que era a Notre Damme que me estava a ver a mim, do seu campanário.
E não demorou muito a que esse meu amor eterno me expulsasse de sua vida. Na verdade, foi nessa mesma noite. Depois de fazermos amor e de me enterrar naquele veludo vermelho, que ele me puxou para fora e de rompante abriu a porta.

Silêncio. Abri as mãos e senti a minha pele gelada na Primavera de Paris. O vão da escada estava escuro e aos apalpões atingi o interruptor e quase por magnetismo acendi-o. Á minha frente estava uma rapariga nua e desgrenhada, parada no meio da escada a olhar para mim com uns grandes olhos fundos.
Com o horror a percorrer a minha consciência, percebi que era Eu. Reflectida no espelho do elevador. E quando comecei a agarrar nas minhas roupas que ele tinha atirado para o chão, ouvi passos na escada. Num ímpeto de sobrevivência, agarrei nos meus trapos e escondi-me dentro do elevador. E foi então que via outra rapariga chegar e tocar à porta. E ele abriu, como se estivesse surpreendido.
“Viu-a pela janela” pensei. E talvez já nada pudesse piorar. Mas podia.

Vesti-me e sai pela mesma porta onde a rapariga tinha entrado e dei-me conta que a madrugada ainda não tinha florescido naquela noite e os ossos enregelaram-se com o orvalho. Esquecera o casaco lá naquele casa e o metro já estava fechado.
Á noite, por Paris estrangeiro, fui tendo frio nas ruas e nas bordas dos prédios. Fui tendo frio nas frestas das praças e à frente da Notre Damme, onde humildemente me prostrei. Fui tendo frio em mim mesma.
E de manhã, acordei ao pé do Sena, enroscada num banco ao pé dum sem abrigo qualquer. Agora também eu era um qualquer.

Agora de mãos dadas com o meu amor à porta daquele prédio, lembrei-me que continuava a ser uma qualquer. Continuamos parados à porta do prédio, e tudo aquilo me era tão familiar que pensei que podia vomitar. Ele sentiu o meu enjoo e longe de saber o que se passava, sorriu-me, achando que eu estava grávida.

Mas o meu pensamento parou ali à porta e já dali não saiu. Que ingénua que eu era.
E de repente percebi que a ingenuidade era uma doença que me estava grudada na pele, pior que a gravidez.
Porque eu seria sempre incapaz de entender o futuro. A nudez em Paris, podia estar à minha espera, em cada esquina.

Por isso quando chegamos ao metro, despedi-me dele para sempre.

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