Quando comprei aqueles all star
tudo regressou como se de um milagre se tratasse: o vento a bater-me no cabelo,
as t-shirts frescas de Verão, as horas passadas na rua a falar de nada. O dia
estava quente, com aquele calor que sufoca e queima a respiração. Mas a vida era cinzenta e o bolor começava a
apoderar-se terrivelmente de mim. Parecia que ainda não tinha vivido tudo, que
era ainda pequena demais para morrer. Quando os calcei, voltou a mim esse
sentimento de ser jovem. Usava-os aos
fins-de-semana, nas férias. Usava-os quando saia durante a semana depois do
jantar. Esperava pelo metro sentada no chão, as pernas dobradas por cima das
calças de ganga. Tocava nas solas e sentia aquele breve frenesim de fazer parte
de Mundo e ao mesmo tempo ser ignorada por ele. Um dia percebi que ainda não
tinha chegado a minha hora e decidi calçá-los definitvamente. Eles moldaram-se sem
surpresa e juntos fugimos e vimos cidades estrangeiras, quartos de hotel,
autocarros vadios. Vimos tantas ruas e estações de comboios, vimos tanta gente,
tantas línguas. De tanto gostar deles, os meus all star começaram a ficar velhos. Apareceram os primeiros rasgões,
a borracha da sola foi-se soltando. Primeiro, deixei de os poder usar no
Inverno, depois foram sendo empurrados para o fundo do armário. Mas ocasionalmente
quando o Verão voltava, eu calçava-os de novo, mesmo rotos. Sentava-me nas
pedras, nos bancos com as pernas dobradas e fumava um cigarro. Aquela sensação
ainda me percorria e iluminava-me por mais alguns dias. Até que finalmente, na minha
ultima viagem os all star deram de
si. Já não podiam mais. Sem tecido e com as solas totalmente gastas, guardei-os
no armário, sabendo que não podiam servir mais. E sabendo que não mais os
calçaria, sabia também que o ser jovem
tinha terminado. Na semana seguinte fiz trinta anos.
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