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Wednesday, July 21, 2010

Sem título

Tocou o telefone.
Ele atendeu e disse-me de forma impessoal: “é para ti”.
Já tinha tantas vezes sonhado com esta cena em toda a diversidade de movimentos e palavras que foi como se a estivesse a viver de novo, numa das minhas divagações. Naquele momento, o meu coração não se mexeu do sítio. O telefone tocou como eu previra. A voz dele era impenetrável, como eu previra. A luz era clara e fresca e contrastava com o meu interior negro e roído, como eu mecanicamente previra.
Atendi e a voz nervosa do lado de lá disse-me o que eu já sabia “Ele morreu. Suicidou-se”. Fiz um compasso de espera, como se estivesse em estado de choque e após alguns segundos voluptuosos respondi de forma grave “Vou apanhar o avião para ir para aí”.
Desliguei o telefone e ele olhava para mim, desconfiado. Mas aquela cena era minha. E como protagonista que ganha o papel sem esforço, espremi algumas lágrimas e contei-lhe que um grande amigo tinha morrido. Em França.

Só quando entrei no aeroporto e confirmei o meu voo para Paris no painel, só quando estava sozinha no meio da multidão do aeroporto a meio do dia é que o meu coração tremeu. E de repente entendi que ele tinha morrido. Que desta vez era a sério e ele já não renasceria das minhas divagações para morrer outra vez.
E ainda agora mesmo ele acabara de morrer e eu já sentia saudades da morte dele. Ali em pé, a ler o número do meu voo, tive consciência do longo e frio inferno que me esperava.
Saí para o calor atípico de Paris nesta época como o tinha feito há dois anos atrás. As escadas do avião que desceram para mim perderam o interesse perante a ausência de vento. Aparentemente, o inferno que previ estava a começar de forma avassaladora. Lembrei-me então de apanhar o metro, ao menos esse era um Inferno que tinha sempre existido.
Foi incrível descobrir que me lembrava de todos os pormenores, das estações exactas onde me encontrei com ele dois anos antes. Estávamos os dois vivos nessa altura. Agora ambos nos arrastávamos numa realidade que já não era a vida.
Parei na estação onde era ficava a casa dele. E de repente, lembrei-me que ele podia já não morar ali. Lembrei-me que não sabia nada dele há dois anos. Tudo o que eu sabia era a morte dele todos os dias na minha cabeça e aquele eterno telefonema que finalmente chegara. De repente lembrei-me que eu não sabia nada sobre a realidade.

E por isso, deixei o inferno chegar devagar sobre mim. Saí em Montmartre, e percorri as mesmas ruas daquele dia.
Tudo aquilo me era tão familiar. Eu passara os últimos meses a viver em Paris e ele era o meu amigo francês com quem eu passeava ao domingo de manhã em Pere Lachaise ou que me acompanhava em noites longas de puro álcool para matar as saudades do meu amor que ficara em Portugal. Estávamos tão vivos nesse tempo. Tínhamos amores no peito e ideias elaboradas em fumo de cigarros que faziam corar os pudicos. Visitámos cidades, conhecíamos Paris à noite como mais ninguém e o mundo pulsava-nos nas mãos quentes.
Às vezes ligava para Portugal e as cerejas do meu país sabiam-me a um doce arrastado pelo tempo na voz dele. Falávamos ao telefone à noite. E eu tinha a minha larga janela aberta e um luar intenso a penetrar o meu quarto. E aquela paixão na distância era quase insuportável. Mas enquanto não era insuportável era flamejante. Já por uma vez naqueles meses ele tinha apanhado o avião de surpresa numa sexta-feira e aparecera à minha porta. A paixão viajara até mim, como no meu maior sonho.
Tudo isso fora no passado longínquo do tempo em que vivia em Paris. E éramos os três vivos.

Nada havia que nós não fizéssemos. Nada havia que nós não experimentássemos. Por isso, um dia telefonei-lhe às 3 da manhã e disse-lhe “Vou a Portugal encontrar-me com ele”. A voz ensonada e um mau português responderam-me “Não vais trabalhar?”. “Digo que estava doente. Tenho mesmo de ir, já não aguento mais”.
E fui. Nas asas da paixão do avião. Novamente.
Cheguei a Lisboa às 6 da manhã. O tempo parecia parar para mim, para o marinheiro que cruza os sete mares e não fica com a mesma vida todos os dias.
Passei pelos mesmos caixotes do lixo onde coloquei a minha vida antiga, a caminho da casa dele. Abri a porta devagar, sem fazer barulho. E a única imagem que nunca esperei ver, foi a única que apareceu aos meus olhos quando abri a porta do quarto e vi a rapariga deitada ao seu lado enrolada no sítio onde eu costumava dormir.
Nesse dia o meu coração não tremeu. Não porque tivesse vivido aquela cena muitas vezes, porque nunca a tinha a vivido e decidi naquele segundo que também não a estava a viver. Mas por ironia, ele abriu os olhos naquele momento e neste breve encontro de consciências eu percebi que por desígnio das probabilidades do mundo, aquela fora a única noite em que aquilo acontecera.
Eu fechei a porta do quarto e a porta de casa e a porta do meu coração, todas de seguida. Não senti qualquer barulho, nem ele se mexeu no seu rigor mortis. Nem ele podia.

Só mais tarde, ao poente voltei a vê-lo. Sentamo-nos os dois numa mesa de café. Ele perguntou-me se eu estava triste e eu disse-lhe que sim, que estava triste comigo. E acho que foi a última vez em que fui sincera. Não que tenha mentido mais tarde, não. Mas nunca mais expus directamente o pano do coração às verdades de nenhum mundo.
Portanto especializei-me em dizer mentiras que são verdades. Especializei-me em ser outras pessoas quando preciso. Ainda que esses meus heterónimos me contradigam em tudo e eu seja acusada de uma suja incoerência.
Recordo um enevoado de conversa em que ele me disse que não tinha conseguido evitar a situação. Que muitas coisas tinham acontecido na minha ausência sem ele as controlar. E que a vida monótona o estagnava. Que ele precisava de adrenalina, principalmente da adrenalina errada da noite errada com a pessoa errada no lugar errado.
Não havia nada que eu não pudesse perceber, e sentia-me triste pelo meu posto correcto num outro sítio correcto. Talvez perfeito de mais.
“Ama-la?” perguntei. “Claro que não!”e foi a primeira vez durante a conversa que pareceu estar vivo. “Eu só não queria morrer”.
Pensei que ele podia morrer de outras formas, mas não conseguia evitar estar triste comigo e só comigo. Afinal aquela situação só não me acontecera porque eu era eu. E porque eu limitava-me a fintar a morte para sustentar amores como aquele e o resultado era que perdia sempre e nunca chegava a evitá-la.
Por isso naquela noite, antes de voltar a Paris, dormimos juntos. Uma noite de amor tão intensa como aquela em que ele me visitou em França.
Antes de me aproximar devagar e de o beijar, pensei que ele tinha estado com outra na noite anterior. Por segundos, achei que a tristeza me ia bloquear os lábios. Mas agora era a minha vez de experimentar tudo. Tudo.
E foi muito mais fácil do que eu previra. Ao fim do segundo beijo, já não me interessava o passado. O presente queimava, e só o presente queima realmente.

No dia seguinte voltei a Paris. Sozinha, no meio da multidão, confirmei o número do meu voo e tive a consciência total de que deixava o meu amor sozinho. De novo entregue à sede da morte para ser saciada. Era demasiado insuportável. Não. Nada é demasiado insuportável, com o remédio certo.
Liguei-lhe e espremi umas lágrimas. E quando cheguei a Paris, ele estava à minha espera no aeroporto de Orly. Saímos directamente para o metro e apanhamos a linha que nos levava a Montmartre. Almoçamos enquanto eu lhe contava o que me tinha acontecido em Lisboa. Noutra língua tudo parecia adquirir outro sentido, como se tivesse sido outra pessoa, que não eu a foder o homem que me traiu. E por isso mesmo fez-me um sentido tão grande que nunca mais falei daquela situação em português.
Perguntei-lhe se não ia para casa. Ele olhou-me de lado, com o vento a bater-lhe nos cabelos, enfrentou-me e disse “Não”. Às vezes o mundo cabe numa palavra. E eu decidi experimentar tudo, todos os remédios, todas as curas, todas as doenças.
Por isso, fomos para casa dele e só acordamos de manhã enrolados um no outro. De madrugada, abri os olhos e julguei ver a imagem dele a espreitar-me à porta, desolado. Mas eu não senti rigor mortis nenhum, não havia sequer passado nenhum a recordar.

Nos dois meses que passei em Paris, entendi na perfeição o que significava “não conseguir evitar a situação”. Meia despida de mim passava metade das noites com o meu amigo francês. Ele estava demasiado apaixonado por mim, e era irresistível aquele amor que lhe saltava dos olhos. Como um reflexo de mim que eu nunca teria. Não agora que sabia enfrentar a morte. Às vezes, quando falava com ele ao telefone, na minha janela larga e com o meu luar generoso, pensava que já não sabia o que era o amor.
Mas talvez fosse aquilo o amor. Eu passara demasiado tempo presa a convenções de liberdade.
Adiei vezes sem conta a minha conversa com o francês. Disse-lhe várias vezes para me deixar, que não o amava. Mas aquele amor latino dele não entendia nada que não fosse o desejo e a teimosia. Até que um dia, eu já não tinha credibilidade e todas as noites ele acabava por aparecer. E todas as noites eu acabava por fugir.

Quando finalmente acabou o meu tempo em Paris, fiz a minha mala e deixei uma carta em cima da mesa. Sabia que ele ia achar que era mentira ou mais um dos meus estratagemas para adiar a inevitável loucura que se seguiria pela noite. Sabia que ele não era como eu, que ele acreditava que podia oferecer-me genuinamente o coração e bater-me à porta de joelhos. Eu sabia.
Mas eu queria experimentar tudo. E agora queria experimentar voltar. E se falasse com ele, ele ia cansar-me e esgotar-me e fazer-me acreditar num amor que eu nunca senti.
Por isso, deixei tudo e apanhei o avião de regresso.
Voltei para casa e para ele, com Paris no passado. Sem nervos de Paris.
Queimei os álbuns de recordações e isso era tudo o que era preciso. Ele abraçou-me com saudades.
Com os olhos molhados de alguma vergonha, senti que sentia. E um remorso gigantesco apoderou-se do meu coração e estrangulou-o à beira do colapso. Ficou assim, por uns segundos estático, como meio-morto.
Mas o mundo não é justo, como o amor. O mundo é um lugar horrível cheio de gente horrível, como o amor.
Por isso o meu coração voltou à vida, cheio de electricidade. Ao longe, alguém morria.
Podia não ser exactamente hoje, mas alguém morria.

E esse dia concretizara-se. Fora hoje. Ali estava eu em Montmartre, sem coragem para enfrentar a vida que deixara abruptamente.
Voltei ao metro e caminhei até casa dele. Ele morava ainda no mesmo sítio. A porteira que me telefonara a avisar, estava à minha espera como se não tencionasse deixar o posto sem me punir primeiro.
Disse-me tudo de uma só vez. Que ele nunca acreditara que eu tivesse partido. Que esperou durante meses o meu regresso. Que esperou as minhas cartas, os meus emails, os meus telefonemas. Depois, deixou de pintar.
E de repente, eu lembrei dos quadros que ele pintava.
Ela insistiu que ele deixara de pintar. E quando deixou de pintar, começou a frequentar o médico todas as semanas. Depois, voltara aos quadros, mas todas as pinturas lhe saiam frenéticas, demasiado loucas. Tão loucas que eram desconexas e sem interesse.
E eu lembrei-me dos quadros lindos que ele pintava a meio da noite, quando eu voltava secretamente.
Ela insistiu “Ele deixou de pintar”. E depois terminou “Ontem abriu a janela e saltou”. Depois acrescentou o nome do cemitério.
Mas antes, eu pedi-lhe para ver a casa. Ela sorriu-me maliciosamente e disse “Também deitou a chave fora?”.
E eu permiti-me um raro momento de sinceridade e respondi-lhe “Eu nunca tive a chave”. Lá dentro, encontrei uma casa impecavelmente tratada e arrumada, como se ele esperasse o meu regresso.
Cheguei tarde de mais.
Cheguei tarde de mais a mim mesma.

Trouxe um quadro comigo. Um quadro sem valor nenhum, um dos últimos que ele pintara, uma quantidade de riscos sem nenhum sentido. Senti-me um Dorian Gray com o retrato merecido entre as mãos. Então, deixei que o quadro me torturasse. Deixei que aquela fosse um inferno perpétuo tomado em doses pequenas.
Fechei a porta daquela casa e corri em direcção ao cemitério. Se não me despachasse não teria oportunidade de o ver, uma última vez.
Mas cheguei tarde de mais, outra vez.
O cemitério permanecia calmo e o segurança indicou-me a campa fresca. “O enterro acabou há meia hora” disse-me ele. E de facto a terra húmida envolvia o ambiente num cheiro forte e adocicado.
E eu senti uma tristeza por ele, semelhante àquela que sentira por mim um dia. Quem me dera que ele tivesse sabido evitar a morte. Quem em dera que ele tivesse sabido mudar de coração e fosse mais resistente ao horror do mundo. Quem me dera que ele nunca tivesse acreditado em mim.
Porque eu já não acreditava em mim. Por isso é que estava viva.

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