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Wednesday, September 01, 2010

Não-Vivido

“Mais tarde será tarde e já é tarde
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa”


O que me deixaste foi isto, um rasto fluorescente de não-vivido. Um caminho bem delineado feito de nadas, de vazios, de buracos no queijo, de ausências em bancos de metro onde não era suposto ninguém sentar-se.
O que me deixaste foi esta crença para acreditar nesta não-vida e buscar nela as vantagens que não existem. Essa crença patética de palavras luminosas e extravagantes onde pisca publicidade enganosa.

E eu habituei-me como mendigo a ir ao caixote do lixo e a vasculhar a vida entre os restos dos outros, como para que usar o que eles já não quiseram e deitaram fora.

Porque a tua crença não me deixou nada; não tenho restos para deitar fora. Acorda apenas em mim esta humilhação de ver a vida por entre as gotas de chuva, quando em alguma janela eles me estendem pedaços de pão (ou de coração) para que não os perturbe com esta estranha maneira que tenho de não-existir.

Hoje, com as mãos cortadas à força de as sonhar calejadas, sento-me à tua porta e admito que me vendas a tua crença. Pelo dinheiro que quiseres, tornaste-te no meu traficante predilecto, a minha droga é esse caixote do lixo esquelético.
E imploro-te que me injectes disso, dessa visão. Não aguento mais abrir os olhos no escuro todas as noites e ver essa fluorescência. Não sei como deixar de não-viver quando toda a minha não-vida me persegue.

Só que já é tarde.
Já é demasiado tarde. Já nada apaga esse trilho.
E vendo-te o meu corpo, já meio desgastado por esta fluorescência que te encandeia os olhos. É o único que vai existindo, mesmo sem contexto.

Vende-me um contexto. Pode ser que assim o tempo o apague.

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