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Monday, April 19, 2010

Contrariando Eugénio de Andrade

Devolve-me.
Sabes toda aquela conversa sobre aceitares o passado?
Sobre entenderes o passado? Esquece. São só palavras vãs. Pombas suaves que te atam os nervos para que nunca venhas a fazer o que estou a fazer agora. Para que nunca venhas a apontar a arma que te aponto neste momento.
Para que nunca vejas o real arrependimento, como eu vejo agora nos teus olhos. Para que não saibas que foi tudo um erro, para que não tenhas a consciência fria e horizontal de que o passado te matou. Como eu tenho agora.

Devolve-me. Devolve-me quem eu era antes de ti.
As cartas que te dei. Os doces que te fiz. Os sonhos que te entreguei. Tudo isso fui eu a dar-me de mansinho.

Mas tu sabes bem que não podes devolver-me. Sabes tão bem que neste momento os teus olhos se enchem de lágrimas, sentem o tiro eminente que sairá da arma que te aponto à testa.
Tu sempre soubeste desde o primeiro momento em que desastradamente atiraste os meus sonhos para o canto desarrumado do teu quarto, que eu morria ali. O teu egoísmo frio e a tua sofreguidão dum prazer menor superaram tudo.
O capricho satisfeito duma tarde de Verão esporádica, a tua fantasia latina. Que morreria no dia seguinte, tu sabias. Tal como eu, tu também sabias.
Tu amarraste-te ao tempo como um condenado à morte se amarra à fé. E fugiste, para não veres o meu cadáver em decomposição, a cheirar mal em todo o lado. Não, seria uma questão de tempo. Tal como um assassino fanático acendias velas em todas as minhas acções, vias-me como dantes, em miragens sedentas por sentires as mãos vermelhas, do sangue que nunca admitiste derramar.
E foi assim, através do teu arrependimento egoísta extremo, que vi a irreversibilidade da flor de Lotus tatuada. E que me fartei das versões suaves que me introduziram no cérebro sobre a tua passagem na minha vida. A lavagem calma e relaxante que me fizeram às tuas memórias, para que descobrisse neles pequenos cristais escondidos.

Mas a verdade que as tuas memórias não são belas. Porque todas as que são boas, foram mentira.
O passado não é inútil, porque me destruiu.
Tal como te vou destruir agora.

Adeus.

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