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Thursday, April 29, 2010

Os meus dois amigos

Os meus dois amigos são dois.

Vieram montados nesses cavalos do faroeste. E nesta vila onde as moscas do bar são mais rápidas do que as mentes a sacar uma pistola de originalidade, eles foram os cowboys dos filmes.
Os meus dois amigos são dois.
Mas vieram lado a lado. Com a liberdade vergonhosamente gravada nas crinas do cavalo único, que ambos montavam. E eu afaguei esse cavalo com a mão da minha solidão.
Os meus dois amigos são dois.
Os meus dois amigos são um.

Depois, quando eu já era outra, revirada no par de olhos novos que me deram, apaixonei-me por esse fim de tarde que se impunha ao fim da estrada.
Porque um deles foi mais rápido. Um deles sabia de cor a podridão falada deste lugar esquecido no fim do mundo dos esquecimentos. Um deles sabia a língua das vizinhas à janela a cozinhar a vida alheia, a língua das miúdas de bar de strip no seu show vulgar e ordinário. E o outro não.
O outro era só um viajante ocasional que passeava a sua solidão trancada. Uma solidão mais honesta.
E foi por isso que quando o meu amor me deixou no fundo dum frasco de vodka, ele foi o único amigo.
Verdadeiro como o álcool. Quente e inflamante como o álcool.

Os meus dois amigos que eram dois.

Os meus dois amigos que eram um.

O meu amigo que era um.

Porque afinal no cavalo só viajava um amigo.
E ele usou esse mesmo cavalo em que chegou, para me levar da casa dele onde eu ia morrendo aos pedaços, entre os risos e o algodão doce daquela feira popular social.
Porque o que nos aproximou de forma proibida foi esse peito aberto à guerra, com o estandarte da solidão à frente. Foi essa mão que nunca passamos um no outro, cada vez que sentíamos a dor do isolamento, a sustentação da ausência de hipocrisia.
Foi assim que nasceu esse amor de amizade. Foi tão honesto que ninguém percebeu, nesta vila social onde toda a gente se ata e se remenda com as linhas de quem gostava de ser. Foi tão honesto que nem nós soubemos, que entre as nossas duras palavras, um abraço significava o amor mais puro. Um amor nórdico que contrastava com o meu tom de pele.


O meu amigo que era um.
As saudades desse meu amigo que me deitou na cama e me aconchegou quando voltei para casa... Para a vila de monstros deformados e estáticos que obrigavam o relógio a andar para a frente para se convencerem de que evoluíam.
O meu amigo que era um. Mas que sempre valeu por todos.

Mas hoje o meu amigo está mudo. Chegou-lhe a notícia de que me libertei daquela vila e que estou prestes a correr a mundo. Chegou-lhe a notícia de que talvez passe à porta dele.

E os ciúmes latinos que herdou da minha pele povoam-lhe a ausência de palavras.

Os meus amigos que eram dois.
Os meus amigos que eram um.
O meu amigo que era um.
O meu amigo que afinal nunca foi meu amigo.


Porque eu escolhi o amigo errado.
Porque eu escolhi o amor errado.
E nesse erro crasso carregado de partículas sociais,
condenei ambos a falharem comigo.



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