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Monday, May 03, 2010

Um cigarro no caís do Sodré

Ia a sair de casa, quando o encontrei. A noite estava tão quente que os vidros da janela escorriam mel de Verão. E por isso larguei o quarto aberto, silencioso como um gato para poder lamber esse doce, cuja ausência me tornava ainda mais anémica.
“Onde vais?”
Perguntas de vão de escada, de prédios multiplicados.
“Vou lá a baixo fumar um cigarro”
Olhares cúmplices em lâminas de instantes. Por há sempre sinónimos para aquilo que não queremos dizer. E há uma linguagem de esgotos, que nos vive debaixo da pele onde sabemos as respectivas correspondências.
Eu repito-me que ele conhece essa linguagem proibida. Que sabe exactamente o que cada uma destas palavras quer dizer no meu universo restrito que é o mundo inteiro.
“Está bem, fazes bem”
Mas ele não sabe.
Desço as escadas em busca de ar, sinto-me repentinamente presa numa rotina de vida. Como se este calor puxasse em mim aquele amor escondido. Como se nunca tivesse deixado de amar a minha adolescência e esse primeiro amor voltasse sempre que faz calor e eu estou presa em quatro paredes de uma rua.
Ar puro.
Afasto-me da porta do prédio. Dos vizinhos. Da rua. Do bairro.
O cigarro sabe-me a mel, neste vento que me leva para longe. Gostava era de voltar ao meu amor, que ficou esquecido.
Este calor inquieta-me, faz arder a pouca razoabilidade que me sobrou desse sonho antigo. Porque é que este calor não me explodiu nas mãos? Vive-me aqui, numa implosão constante. Gostava tanto de vê-lo explodir, como gosto de o sentir aqui, sensualmente perto da minha pele a ameaçar a explosão.
Há uma distância ilimitada que nunca poderei percorrer. E não vale a pena dizer que amo Lisboa. Amei-a dantes, nestes anos podres barrados de ócio. Ou talvez nunca tivesse chegado a amá-la. Porque não amo nada.
Só amo o que não se ama: o próximo instante, as ruas sem paredes. As gotas do mar e a saudade do futuro.
Não a vale a pena arranjar todos os dias desculpas para poder amar. Estou farta de desculpas que turvam o mundo para eu poder suportá-lo.
Não quero amar coisas que não quero amar. Tal como não quero ouvi-lo dizer coisas que ele não disse.
Voltei. Abro a porta.
“Demoraste! Foste fumar um cigarro ao Caís do Sodré?”
Até parece. Mas ele não sabe.

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