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Tuesday, May 04, 2010

Jacques Brel

Existe uma aparente indiferença sobre o que não se vê. Ou como se tudo o que se visse fosse simplificado numa equação de imagens.

Eu sempre rejeitei a realidade dos meus olhos, esses órgãos viciados num mundo demasiado feio para não enviesar o mais refractário dos ângulos.

Hoje oiço Jacques Brel à janela da cozinha. E tu dizes-me que ele era feio. Como se a vida dele, como se a existência dele se resumisse a um corpo abandonado dentro de uma voz. Como se essa voz, essas palavras que oiço neste momento fossem a compensação cedida por um qualquer Deus. Como se esse Deus que me inventas tivesse pena da cara dele, das rugas dele, do nariz torto dele. Como se ele cantasse daquela forma porque nasceu assim, fechado num corpo horrível e lamentasse em cada nota, a solidão da sua fealdade que o afastou do mundo das pessoas bonitas onde o sexo é garantido.

Mas na realidade ele era feio, tu repetes. E isso quase me magoa, de tão complexamente superficial. Eu sei que ele era feio. Sei-o porque me habituei aos estímulos deste mundo mudo. Sei-o porque reconheço os padrões.

Mas eu não compreendo que ele seja feio. Eu não o acho feio. Mesmo com as rugas e o nariz e todos esses defeitos, que aparentemente o tornam horrível. No meu mundo invertido eu só lhe vejo a voz. A voz é o único corpo que lhe conheço.

Importa-me lá que ele tivesse essas características todas que lhe apontas. Não são relevantes, não existem. Não precisam de ser compensadas. Elas são aquilo que eu quero ver e não o contrário.
Por isso não digas que te estou a fazer um elogio pela metade quando te digo que podes ser-me tão lindo como o Jacques Brel. Tomara esse Deus que não existe, em algum momento conseguir compensar o corpo grego que tem, com uma existência tão cheia como a que existe na voz de Brel.
Este é o melhor elogio que te posso fazer. Porque significa que não tens nada a compensar.



Para o Ricardo

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